Há algum tempo atrás (coisa de catorze anos, para ser preciso), eu comecei a ter uma sequência de sonhos em série, um dia após o outro, cada um contando uma parte de uma estória. O mais importante nestes sonhos era a riqueza de detalhes, de eventos, de pessoas. Eu comecei a escrevê-los, mas era tanta coisa, que acabei apenas por escrever um plot de eventos, uma lista de personagens, e depois disso, eu comecei lentamente a escrever uma estória fechada.
Semana passada, eu achei os meus manuscritos destes textos, e alguns dos primeiros esforços. Minha pergunta é: vale a pena? Estou pensando em usar o blog como um catalisador de obrigação. Digamos - uma parte por semana, ou coisa parecida.
Bom, a resposta fica com vocês.
Torres de Atlântida
Parte I
Chove ao redor das Grandes Torres: água, som e luz pouco acima de seus cumes afiados. Um açoite frio do céu e atravessando quilômetros até atingir o grande mar e as ilhas do Povo das Torres Altas: as dinastias imortais que se escondem da plebe em costumes febris e delicados, servidos por máquinas, cercados por exóticos animais de estimação — criaturas modificadas geneticamente a seu bel-prazer, tão diferentes da forma que tinham originalmente, que os povos Abaixo acreditavam neles como crias dos Deuses, todos eles — os leões com asas, as serpentes de hálito chamejante, os lobos que andavam sobre duas pernas.
Trovões pontuam o clarão quase incessante dos relâmpagos nesta primeira noite do equinócio de verão. Para as Torres, é uma noite diferente de muitas outras, por vários motivos. Hoje, todas as famílias nobres se reúnem na mais alta de suas torres, esperando...
— Está quente, aqui...
— Você preferiria estar lá fora, eu suponho.
— Não deve fazer muita diferença.... Esta noite maldita...
— Nisto eu concordo. Lady Dartrasis deveria ter contido o seu parto para outra noite. Ou, pelo menos, até o amanhecer.
— Mas não! Ela quer ter seu filho logo esta noite!
— Não é culpa dela, senhores.
— Tampouco é nossa. Noite maldita... Estes relâmpagos todos... Não há ninguém aqui que saiba pará-los?
— Não na noite do Naiv. Ninguém pode.
— Ninguém ousa.
— E ela ousa ter filhos nesta noite!
— Sim, é perigoso, mas a escolha é deles. A escolha dos Regentes.
A isso, os Lordes assentem e espalham-se pela sala de espera da Torre Imperial: Uma abóbada de aço vitrificado, suspensa a quilômetros do solo por poderosos filamentos biometálicos, tênues como as promessas de um feiticeiro. As luzes baixas espalham pequenos círculos de luz indireta pelo aposento de cantos arredondados, repleto de um luxo sucinto e quase descuidado.
A chuva está rugindo algo para eles, escorrendo pelas janelas em forma de bolha. “Ouçam”, ela parece dizer, “Hoje será uma noite para ser contada sempre. Lembrem-se bem”. E eles se envolvem em seus mantos, apesar da temperatura ambiente regulada para um calor subtropical, apesar das chamas que ardem, sobrenaturais, em bastões metálicos nos cantos da sala.
E acariciam seus amuletos de magia ancestral. Mãos se fecham sobre punhos de espadas que guardam o espírito de eficientes guarda-costas, há muito falecidos; jóias que escondem gênios antigos, entidades descorporificadas, padrões de energia presos dentro de um intrincado relevo oculto de poder.
Os Lordes sentem algo que a espessura de seus próprios espíritos não lhes deixa admitir, algo que só crêem reservado para os fracos e inferiores.
Os Lordes das Torres Altas de Atlântida estão com medo.
— Que horas são?
— Deve ser quase manhã.
— Não, não. A manhã irá demorar a aparecer, ainda mais com esta tempestade maldita, esta abominação...
— Não diga isso. Não é uma noite para se falar do mal.
— Por que não? Tudo isso sobre a noite do Naiv é uma estúpida superstição, velhas estórias levadas a sério por tempo demais. Nenhum “mal terrível” caiu sobre nós, há mais de mil e quinhentos anos. O que acham que pode acontecer? Hein?
— Lorde Mallachine... é melhor você se conter... não deveria — começou lorde Enmion, mas não conseguiu completar a frase.
— Não deveria o quê? — cortou Mallachine, com a pedra do seu broche de capa faiscando em um pulsar de luzes azuladas — Blasfemar contra os Deuses Negros da Tempestade? Não deveria dizer que suas ameaças são ridículas? Eu sou um filho das Torres Altas! Não um camponês temeroso, acreditando que o raio e o trovão são deuses famintos pelo seu sangue ralo. — ele ergueu-se, sua voz num vociferar nervoso — Eu sou Mallachine das Torres, filho do Grande Mallad, que parou as ondas com sua voz. Eu não calaria nem se o Antagonista abrisse as portas do inferno, com uma maldição em cada braço e me ordenasse!
— CALE-SE — a voz veio junto com um trovão, e mais alta que seu estrondo.
Não era uma voz que admitisse discussão. Não esperava por balbuciares atrapalhados nem por perdão. Era imperiosa. Era a voz de Lorde Rando Dartrasis, 69o Regente Imperial de Atlântida, coberto de sangue que escorria por sobre o manto e empoçava no chão acarpetado, deixando manchas escuras de um castanho cobreado por onde ele passava. A trilha de um sangue que não era seu, vindo da sala de parto até a presença dos Lordes.
Um par de pequenos corpos, nus e cobertos de muco vermelho mexiam-se e gritavam em suas mãos.
— Que todos saibam que a Casa Dartrasis tem dois herdeiros reais: dois gêmeos. — a palavra fez um sussurro silencioso correr a sala. Gêmeos eram mau presságio entre a nobreza — E — continuou ele — que o trono tem uma Regente a menos.
Lorde Mallachine era o que respirava com mais cuidado, no maior silêncio possível. Aquele homem à sua frente não parecia estar possuído pelo Demônio. Não. Ele parecia ser o próprio Demônio. Pior ainda, pela sua expressão, poderia-se dizer que ele considerava o Inferno como um lugarzinho sem importância.
Então, com os olhos muito azuis injetados de sangue em linhas finas, a pele riscada pelo brilho dos grandes raios lá fora, Rando atravessou a sala em silêncio e foi mostrar a tempestade aos filhos.
Embora há quem diga que foi o contrário.
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