24.4.04

Coletânea III

Esse, eu juro, é o último. Mesmo esquema dos anteriores, e talvez o único com uma estrutura de dialética, de análise comparativa. Chato, mas fazer o quê? Ser menos chato? Fala sério...

 

Tenda de Milagres

O shopping há muito tempo deixara de ser simplesmente um mercado para tornar-se uma habitação, muito embora não para pessoas — ou pelo menos, não para as vivas. As máquinas moravam ali, onde ninguém mais.

Concentrados em suas tarefas repetitivas, os engenhos comerciais modelavam vitrines, coordenavam compras, revisavam crédito e vigiavam, solenes, seus visitantes, através de um milhar de olhos invisíveis em esquinas, curvas, escadas e colunas. Uma obtusa consciência artificial orientava ciclos de velocidade de passarelas e escadas rolantes, entre o labirinto de lojas e restaurantes, respirando em grandes golfadas de ar perpetuamente condicionado nos presumidamente agradáveis 26 Celsius. Engrenagens que não rangiam nem vibravam faziam as portas se abrirem, barreiras estanques entre a realidade abafada de lá fora e aqui.

O Shopping era um mundo fechado, seguro e inviolável.

Fontes de luz, água e perfumes cascateando plantas artificiais, brilhando falsamente úmidas sobre o também falso mármore.

 

“Ó vós que aqui entrais, abandonai todo o seu crédito”, sussurrou Paulo. As portas internas abriram-se em silêncio, recebendo-o com um suave bafejo de frio. Ele imobilizou-se na entrada, deixando a iluminação de suposto entardecer banhá-lo por inteiro. Sorriu.

“Pôrra, agora é toda vez?”, Geraldo perguntou.

Um sorriso de resposta. Eles atravessaram o pórtico de entrada, sentindo seus celulares vibrarem sob a análise dos detectores de armas, os circuitos comunicando nome, códigos de identidade e classe de consumo de seus proprietários. Pequenas indiscrições entre máquinas. Entre iguais.

“Veja bem,” Paulo começou, “nós entramos em um lugar onde toda a posse é o que faz de você um componente útil da sociedade, um membro sadio desse grande organismo que chamamos de civilização.”

Geraldo suspirou. Mais um daqueles dias.

“Aqui, a medida de quem você é aparece no peso das bolsas de plástico dez vezes maiores que o produto que você compra, representado por grupo de sinais eletrônicos que representam sua capacidade de se destacar junto aos seus pares, de parecer melhor do que eles.”

“Você anda conversando muito com o velhote.”

“Que é que tem?”

“Velho demais. A galera tá pensando que tem rolo.”

Um sorriso malicioso de Paulo, preparando-se para o bote.

“Quer dizer que quando alguém tem umas idéias legais, você conversa com o cara, você tem que estar levando nele? Ou levando dele?”

Geraldo olhou ao redor. Ninguém interessado na conversa, aparentemente. Bom. Já bastavam as câmeras “Não, mas é que você fica conversando muito tempo com ele depois da aula. As pessoas começam a pensar por quê.”

“Porque ele tem boas idéias. Quer dizer, o cara é velho, ‘gado? Quarenta anos ou mais, ‘gado? Ele é velho, ele lembra de antes dos computadores dizerem ‘por favor’ e ‘muito obrigado’.”

“Hein?”

“Sei lá, foi ele que disse. Também não liguei. Muito velho.”

“Ele tem mais de quarenta, ‘gado?”

“Foi o que eu disse.”

 

Compradores perpétuos atravessavam o grande átrio de formas suavemente orgânicas, concreto em um casamento arranjado de plástico com fibras metalorgânicas, estruturas que se renovavam anualmente, mudando de cor da mesma maneira que os jeans envelheciam com dignidade, suportando abóbada após abóbada de vitraplástico que deixam a baça luz do dia passar. Uma Meca de veneração dispersa entre as praças de alimentação, os nichos de entretenimento e as onipresentes lojas de moda, refletindo a tendência da última semana, em perene rotatividade.

Os seguranças dispersos em roupas de proteção antibalísticas, disfarçadas para parecer um cruzamento entre ternos e uniformes policiais de cinema, conversando entre si com fones subdérmicos e inconscientemente ajustando o peso desconfortável das armas não-letais nos coldres logo abaixo das axilas. Todos eles recém-egressos das academias de segurança privada, seus diplomas de bacharelado em TSEP II — Técnicas de Segurança Estatal e Privada — emoldurados na parede, como um relicário. Alguns ex-policiais, a maior parte formada de estudantes de direito que acreditaram na fantasia das butiques de modelagem sobre um corpo per-feito inspirar respeito absoluto.

Suas formas onipresentes em uma dança de turnos através dos infinitos corredores do shopping, vigiando, mãos e pernas a serviço da máquina que tudo governa, toda olhos e ouvidos dentro do ambiente de segurança absoluta.

 

O velho observava a dançarina executar o complexo movimento da coreografia de vendas sobre a superfície perfeita da vitrine, um espelho virtual de bilhões de pixels, pequenos como moléculas, refletindo uma realidade guardada em um cartucho de circuitos óticos do tamanho de sua unha. Os passos, sampleados de sabe Deus quantos musicais de uma era anterior até mesmo à sua, mas que ele podia alcançar quando garoto, graças à máquina do tempo das reprises.

Era curioso, como a música mudara tanto e ao mesmo tempo tão pouco. Os ídolos do rock tinham se tornado super-heróis da ficção científica, feitos para consumo não apenas de música, mas de intrincadas séries de clips em formato de seriado, com estórias de interligação difusa, aparentemente desconexa, mas que deixava entrever profundas camadas de enredo, com insinuações de filosofia, sociedade e cultura. Tudo para vender bonecos articulados, refrigerantes e camisetas videoativas.

Os ídolos da semana. Era só o que se podia almejar. O megamercado de mídia, agora praticamente sob uma única bandeira, se permitia ao luxo de projetar apenas um ícone máximo de cada área. Apenas um maior cantor, uma grande banda, um máximo megastar. Mais que isso e as garras ávidas dos abutres de terno desmembravam a estrela-por-vir em um frenesi de processos cautelares de copyright e reserva prévia de nicho cultural.

Suas décadas traziam uma série de lembranças incompatíveis com este novo mundo, que ele vislumbrara apenas em seus sonhos mais estranhos: uma insólita mistura cinematográfica de Blade Runner, 1984 e Metrópolis. Utopias desfiguradas pelo clichê e pela inevitabilidade do óbvio. Sentia falta do passado não como uma casa, mas como uma família. Oitenta anos de caos controlado fizeram do mundo um lugar mais confortável, talvez para a maioria das pessoas, mas não fora sempre assim? As coisas mudam, e quanto mais mudam, mais permanecem as mesmas. Tinha sido assim com os espaços ao seu redor. Rádios, televisões, computadores, a rede... Mas as pessoas.

Não esperava que as pessoas mudassem tanto quanto nestas últimas três décadas.

Uma espécie de juízo final feito em grande parte de apatia, delineado cuidadosamente com uma mistura precisa de reverência e deslumbre dominava a todos. Felicidade? Sim, com certeza. Mas não felicidade de verdade. Era mais uma coisa abortada prematuramente de limpos designs europeus, celebrando uma falsa multi-culturalidade, onde a única coisa múltipla eram as escolhas pessoais sobre variações de um mesmo tema.

Nove caracteres alfanuméricos variáveis para cada homem, mulher e coisa viva ou pensante sobre a superfície da terra.

Classificação, impessoalização, ordem e progresso. Não exatamente nesta ordem. As grandes conquistas deste século, deste novo século já tão perto do fim, prenhe de novas maravilhas — que ele suspeitava, em silêncio resignado, serem tão vazias quanto as deste.

Lua, Marte, Vênus, Europa e Plutão. As novas fronteiras já devassadas por exércitos de máquinas microscópicas, terraformando o território virgem do amanhã para legiões de compradores apressados e turistas. Nunca há tempo para se ver a paisagem — ergo, a paisagem não é necessária. Talvez em dez anos existam shoppings em Marte. Em mais trinta, condomínios de luxo em Vênus, sob vinte e cinco milímetros de chuva diária. As perenes geleiras de Europa convertidas em uma colossal nuvem de vapor para o efeito estufa. Oceanos de peixes geneticamente adaptados para atender as necessidades alimentares de bilhões.

Duvidava deste último. A fome, entre todas as novidades, era uma constante imutável.

Mais poesia sem-vergonha.

Entre hai-kais e versos brancos, aqui vai mais uma dose para ninguém pensar que eu sou santo ou anjo. O primeiro foi pruma ex-namorada de muitos anos passados (não, ninguém conhece. Talvez o Misael se lembre, pra vocês verem como faz tempo). O segundo é um hai-kai de pé-quebrado que tenta ser uma síntese, mas não consegue. Que merda. O terceiro é sobre OUTRA ex-quase-namorada que conheci numa festa. Hoje, se diria que "ficamos". Muito intenso, mas não deu em nada. Finalmente, um monte de pequenos Hai-kais nojentos, mal-feitos e com a métrica mais destroncada que a campanha do Vasco. Mas segue a regra: três a cinco linhas, uma imagem.

 

Teu Gosto Amargo

Acho que não devo dizer
que o teu amor tem o gosto amargo
do café:
é algo desnecessário.

Acho que não posso dizer
que dependo tanto dele
quanto do café:
é algo óbvio.

Acho que não preciso dizer
que prefiro o gosto amargo do café
ao teu amor:
é algo dispensável.

Pois nele, ao menos,
posso pôr açúcar.

 

Romance Erótico Japonês

O fluxo carnal
que a pena descreve
é insuficiente.

 

Nosferatu

Na noite passada
teu infinito de expressões
como um mar.
Terror de encontrar a cama vazia
ao amanhecer.

Insônia e cigarros —
lei seca da alma.

Durmo.

A noite desperta minha pele
com estranha umidade:
dedos molhados tamborilando o teto
vaga impressão de tempestade
(ninguém ocupando o espelho)
dores no pescoço.

Campainhas.
Dobradiças.
Um esconderijo entre lençóis
e as vozes.

Minha porta que se abre
e você...
Luz? Não há luz.
Mas
teus olhos brilham
com todos os gatos à meia-noite.

Presciência de beijos no pescoço
na tua voz anunciando
— Voltei.
Aceitação de que não conhecerei
um amanhecer
jamais.

Teus dentes.

 

Hai-Kai´s

Broken Love

Piece of glass
silver glow that shines
in rain.
She doesn’t cry.

Alley Jungle

In the alley
a prowler kitty.
Nail, teeth and claws
but the eyes are sharper.

Bright Lights, Bright City

Cocaine:
raining, snowing
in my brain.

Baby Love

Woman gets undress
I look for the window —
loose my hart
hope of lights on.

Elegy

An angel’s heart
is but a heart
made of gold and light.
Thought gold is pure
and light eternal.

Vain Heart

Flute broken
along the way:
love without hope.

Hourglass

Crying eyes
chained at the watch
— you don’t come.

Last Page

Runaway children:
a frozen scream
lost in the night.

Samurai

the shining blade
thundering overhead:
justice made of metal.

23.4.04

Coletânea II

Já que um ou outro gato pingado se interessou, aqui vamos nós de novo. Esta é outra estória, não diretamente ligada (pelo menos não neste momento), e certamente, não em sequência, mas enfim, no mesmo "ambiente".

 

Limite da Visão

“Meus olhos doem.”

“Só um instante”, disse o médico, examinando as leituras do aparelho oftalmológico, um inseto em aço branco, plástico e mostradores de cristal líquido que brotava a partir do pedestal, ancorado ao chão acarpetado. Um conjunto de patas espalhava lentes, sondas, espelhos e luzes sobre os olhos do paciente recostado na cadeira. Ele teclou um comando, observou novamente as leituras e fez os membros da máquina afastarem-se da cadeira.

Seu paciente, um homem corpulento, mostrando mais que alguns sinais de excesso de peso, ergueu a cabeça, piscando, enquanto tateava pelos óculos no bolso do casaco. Levantando-se devagar, ele acompanhou o médico até sua mesa, onde uma receita era expelida pela impressora. Ele ouviu o mastigar metálico que secionou o papel, quando o médico puxou-o da fenda junto ao gabinete do computador.

“Use esse colírio”, disse ele, “e evite sair de casa durante o dia, até a ardência diminuir”.

“E seu eu precisar?”

“Precisar o quê?”, perguntou, sem levantar os olhos do teclado

“Sair.”

“Ora, pra quê?”

“Trabalhar, sei lá.”

O médico olhou-o com um sorriso malicioso: “e você trabalha fora de casa?”

“Não, mas... Bom, sei lá... Se precisar ir ao médico — como agora.”

“Use os óculos escuros.”

O homem assentiu, lembrando-se da dificuldade para chegar até ao consultório, mesmo com seus Ray-bans no máximo, o marcador de UV na borda da lente reclamando com um sinal de exclamação vermelho, irritado, sempre que ele tentava escurecê-los além do limite permitido por lei.

Apertou a mão do médico, despedindo-se, e tomou a saída da clínica, agradecido pelo sol já ter se posto. O carro sinalizou em reconhecimento, quando ele se aproximou, e abriu a porta ao toque da mão na maçaneta. Sentou-se, o cinto de segurança ajustando-se à sua volta, travando na posição com um pequeno choque metálico. O motor elétrico ronronou em resposta, acendendo os faróis e ele entrou no trânsito da avenida principal, perdido em pensamentos e temores de luz.

“Não medo do escuro”, pensou, “mas da luz”.

O carro perguntou se ele não queria ir pela rota mais comum, e ele ignorou o pedido de direção automática — não confiava muito na perícia do satélite de navegação local. Duas vezes este mês, o alarme do carro o assustou quando começou a receber os dados do satélite: vírus de navegação. Algum garoto esperto e sacana tinha entrado no satélite de trânsito pela rede, deixando uma trilha de sujeira digital. Desde então, não se arriscava, pelo menos até poder colocar um software de proteção melhor no carro. Um daquele anti-vírus da Volksoft deveria ser o bastante. Não eram conhecidos pela alta eficiência, mas pelo menos a atualização era de graça, e pegavam a maioria dos sacaninhas de computador. Os mais comuns.

Mas este mês não. Tinha que terminar o jardim, pagar as aulas de violino de Helena, e tinha também aquele filtro de ar pra sala... Não, definitivamente, este mês não.

Além disso, Carla queria um carro novo. Não que o dela estivesse velho, mas ela simplesmente não se dava bem com a interface dele. “Quem agüenta esses volks?”, ela dizia. Bem, ele não tinha problemas. Eram um pouco obtusos, claro, mas agradáveis. Não se metiam na sua vida, eram educados, não tentavam parecer humanos... Ele não gostava de máquinas excessivamente humanizadas, da idéia de eletrodomésticos tendo que parecer gente. Estações de trabalho, máquinas de atividade intelectual, isso ele podia entender. Mas carros? Elevadores? Geladeiras? Não, havia um limite para o que deveria ser tornado inteligente — ou pelo menos, com a aparência de inteligência.

A chuva começou subitamente: um aguaceiro violento, cegante, que o fez ligar o automático, deixando o carro manobrar a maior parte do tempo, as mãos no volante fazendo correções mínimas de curso, um conforto pessoal de que alguém estava no controle, não um computador infectado flutuando a alguns quilômetros acima, no céu índigo da baixa estratosfera.

Meia hora de tráfego pesado e a chuva cedeu por alguns minutos, limitando-se a uma garoa rápida, com chicotadas ocasionais de vento molhado. Ele gostava quando chovia, de certa forma. Limpava o ar, fazia o cinzento do céu um pouco mais claro. Dava até pra imaginar como ele era azul. Podia se lembrar ainda, com dez, quinze anos, andando por ali, sob o sol... fazia tempo demais. Virou uma esquina, o carro comunicando-se com o portão da garagem, abrindo a porta, fechando...

A chuva ficou do lado de fora. Apenas um tamborilar surdo no telhado de vitraplástico o acompanhou, deixando uma assinatura úmida, distinta, no ar, de ozônio, poeira e lixo.

“Antigamente,” pensou, com uma certa nostalgia, “cheiro de chuva lembrava terra molhada”.

Saiu da garagem, entrando na casa pelo pequeno corredor de concreto. Pendurou a capa ao lado de um par de galochas empoçando o chão com barro e lama de papel colorido.

“Hoje em dia é só lixo molhado”.

Mas sua esposa o recebeu com um sorriso, deixando o controle remoto de lado, e ele pensou que afinal, as coisas não estavam tão más assim.

21.4.04

Coletânea

Já há algum tempo eu venho trabalhando (e abandonando) a idéia de trabalhar em uma coletânea de contos e noveletas. Este que vocês lerão abaixo (se tiverem saco para tanto), faz parte de uma variação desta idéia: um conjunto de contos interligados, contando uma só estória, do ponto de vista de várias personagens diferentes. Comentários, please.

 

 

Gata de zinco no teto da noite quente

Enrodilhada na cadeira, Lana sentia-se vazia, aridamente seca, como se todo o vinho que já havia tomado pudesse desidratar. Como se ele fosse a verdadeira esponja, e não o seu fígado dolorido.

As garrafas espalhavam-se no chão sem nenhuma ordem aparente. Ergueu os pés descalços, sentindo o frio do chão nu, os mosaicos de cerâmica encaixados no quebra-cabeça intrincado e quase hipnótico — tedioso, até — dos tons de marrom veneziano e areia. O sistema de entretenimento doméstico junto da janela embalava tristeza estéreo no piano sintetizado, soando demasiadamente melancólico ao fundo da orquestra de cachoeiras, chuva e vento que a máquina se esforçava em fazer parecer natural, coreografada nas caixas sensurround —resultado da economia de quatro meses de salário — espalhadas estrategicamente pela sala escura.

Apatia. O tamborilar da chuva lhe deixava com um gosto de tédio, um metálico amargo na boca, no mesmo lugar onde ele a beijara pela última vez. Coçou a pele nua da barriga, desceu um pé para brincar com uma garrafa e o vitraplástico esverdeado imitando cristal fez um ruído desagradável pela textura enganosa do piso.

Rilhou os dentes, lembrando de que ele detestava o som e levantou-se; sentindo o equilíbrio falhar. Ele riria, se a visse assim. “isso é algo que jamais aconteceria comigo”, diria. Mas ele não estava aqui. Estava na rua — ou já instalado em algum outro lugar? Não. Seu impermeável cinza-azulado — com a grife se destacando em um sutil holograma de néon — estaria agora deixando a chuva respingar à volta, mantendo os cabelos negros apenas úmidos, os olhos como faróis de jade.

Ah, que bobagem, conjurar estas imagens dele. Não era com poesia fácil que ele iria voltar. Algo o faria voltar? Ela procurou pelos cigarros, em algum lugar na penumbra da sala, e quando sua mão tocou o plástico do isqueiro, ela já tinha uma resposta formada.

Não.

Ele não era de voltar. Suas roupas já não estavam aqui; não que tivesse muitas. Apenas o bastante para que coubessem em duas malas, nada de peso excessivo. Um homem prático.

E, como todos os homens práticos, insensível — pelo menos no final.

Luz. A grade de prata-tungstênio na ponta do isqueiro, engravidando um ovo de plasma incandescente, flutuando como um pequeno milagre acima da ponta do tubo roliço, menor que o seu polegar. “Tudo isso para acender um cigarro”, murmura. O maço de Java Supremes estava ao lado do isqueiro, pequenos cilindros enrolados à mão, com folhas de fumo cubano e turco. Caros, mas ela podia se dar a esse luxo, pelo menos, de vez em quando.

Ah, merda, estava na fossa. Haveria luxo maior que esse?

Tropeçando, foi à geladeira descobrir se ainda havia outra garrafa de vinho. Não que a garrafa fosse de vidro, ou que seu conteúdo viesse de uvas, mas o que era verdadeiro hoje em dia? A maior parte dos homens tinha plástico em pelo menos um quinto dos seus corpos esculpidos nas boutiques cirúrgicas do centro da cidade e dos shoppings da zona sul: sorrisos, olhos e pele. Toda uma geografia de músculos inflada e tornada rígida para atender aos apelos da moda. Íris reluzindo azuis, verdes, ocres, neon, de iridescente vermelho Ferrari ou com o padrão de estrelas em supernova que era a novidade da semana. Plástico, tudo plástico.

“Então, qual é a diferença”, pensou, talvez em voz alta, “se os corações são de pedra ou plástico?” Suas mãos encontraram a maçaneta da geladeira, na altura da coxa, e ela abriu a porta, deixando a luz baça revelar feições agudas, o nariz arrebitado e esguio, abaixo da pequena catarata de fios negros misturados com louros, cuidadosamente espalhados pela franja. Os olhos castanhos, agora melancólicos, encontraram uma garrafa de vodka pela metade.

Fechou a geladeira, destampando a garrafa e tomando um gole direto do gargalo. A bebida desceu com um leve acento de cevada no final e ao invés de calor, um calafrio percorreu o rosto, indo depositar-se no peito.

“Ambos não quebram, no final”, concluiu para si mesma.

Soldat

Alguém já ouviu falar em Soldat?

Trata-se de um joguinho bidimensional de gráficos simples, que pode ser jogado on-line, contra outros jogadores, ou contra bots no seu computador. Uma espécie de Counter-Strike dos pobres.

Mas o desgraçado é viciante! Os sons são bacanas, os gráficos, embora simplíssimos, são divertidos, e é cheio de pequenas piadas gráficas e outros elementos humorísticos relacionados a carnificina de uma maneira geral.

Possui a maior parte das armas de Counter-Strike, além de outras mais, com seus efeitos e características particulares, permite a criação de equipes em seis modos de jogo, como deatmatch, capture the flag e teammatch, editores de mapas (já vem com 26 mapas) e só tem 10mb de tamanho!

Para os amantes da chacina digital sem placas aceleradoras de vídeo 3D e com máquinas de 3 gerações atrás, é a melhor solução para estourar amigos online.

UnP ou racha!

Bom, segundo o site da UnP, eu fui aprovado em seu vestibular programado para o curso de Comunicação Social (Jornalismo). Agora vai!

Amanhã cedinho já sairei para fazer matrícula, apresentar histórico escolar, essas coisas. Felizmente, já tenho em estoque duzentas dúzias de fotos 3x4, xerox de quase todos os meus documentos e toda aquela putaria burocrática que é tão comuns aos meios escolares.

Só não entendi por que eu fui o único a ser aprovado. Quer dizer, os caras oferecem para o vestibular programado cerca de 20-30% das vagas disponíveis. Era de se esperar que mais gente tivesse passado. Ou só eu fiz a prova para Jornalismo? Ou eu fui o único que achou o nível daquelas provas ridículo? Ou a minha redação impressionou tanto os responsáveis pela correção que eles me aprovaram de maneira unânime e incondicional, de forma a ter um futuro ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em seus quadros docentes? Vai entender...

De qualquer maneira, é Back to School pra mim.

A última flor do Álamo

Eu ainda nem sei do que se trata, mas já fiquei de pulga atrás da orelha: Hollywood está produzindo um novo épico chamado de Álamo.

Pra quem não sabe, a Batalha do Álamo, um forte onde um grupo reduzidos de tropas americanas deu combate às forças de Santana durante os conflitos dos EUA com o México, é coisa lendária pros americanos, em especial para os mais xenófobos, que a têm tão queridas quanto a batalha na fortaleza de Rohan no Senhor dos Anéis: As Duas Torres.

Vejam a progressão da coisa: Descontentes de não terem mais a ameaça comunista para combater, eles precisam arrumar novos motivos para descontar sua frequente angústia e frustração de serem uma cultura de retalhos, de miscigenação negada. Assim, eles se metem na América Central e do Sul, sob o pretexto de "combater o tráfico de drogas", empurram armas para os "Irã-Contras", para os Guerrilheiros Afegãos lutando contra o imperialismo soviético em seu último suspiro agonizante e invadem o Kuwait, o Iraque e a putaqueopariu com o intuito de defender os direitos humanos de ditaduras e assegurar os direitos individuais básicos da humaniadde como um todo.

Eles não são legais? Por exemplo, logo após o bombardeio do WTC, o jornal satírico The Onion (um Casseta&Planeta de lá), mostrou como estava a psique americana sobre a fonte do ataque terrorista:

E também deles, um banner, logo na época da invasão do Afeganistão e Iraque:

Mas o melhor mesmo é esta matéria, falando sobre a coragem de W. Bush ao acompanhar suas tropas na invasão.

Mas voltando ao meu tema principal: sempre que eles vão entrar em guerra, descer o cacete em alguém estrangeiro, seja lá quem for, os meios de mídia começam a preparar a consciência pública com filmes, séries, reportagens e até desenhos animados (pra não falar em quadrinhos) mostrando que a guerra é uma coisa não só legal e divertida, mas também necessária - quase uma obrigação patriótica. Muitos deles têm uma conotação revanchista, mostrando que os EUA foram injustamente provocados, atacados ou mal-falados, e agora alguém tem que pagar por isso! E sempre com a figura do herói solitário, sim senhor, porque um bravo lutador da liberdade americano vale mais que cem comunas sujos ateus drogados comedores de criancinhas.

Tudo balela. Já notaram que eles só entram sozinhos em guerras onde eles têm a certeza (ou, pelo menos, acham que têm a certeza) de vencer? Coréia, Vietnã, Guerra do Golfo I e II, Kuwait, afeganistão, Iraque... A lista é longa. Claro, perde se compararmos ao velhos impérios colonialistas, como França e Inglaterra, mas a América é jovem: ainda tem muito tempo pela frente.

Aliás, esse "domínio" do Iraque me parece meio fajuto: todo dia cai helicóptero, soldado, caminhão e tanque americano. E não é tropa regular não, é a população pegando em armas, usando lança-mísseis carregado em lombo de burro e camelo, rifles que sobraram de estoques russos, coisa bem Vietnã mesmo.

Acho é pouco.

Contudo, o problema maior ainda não foi analisado: os americanos estão ficando sem ter quem dar um cacete. Espero, pelo bem da humanidade, que logo, logo, sejamos invadidos por alienígenas empenhados na conquista do planeta. Aí os americanos vão ter concorrência à altura. Ou pelo menos, ter o que esfregar na cara do resto do mundo "viu, como eu salvei o mundo pra vocês, bando de mal-agradecidos? Hein? Viu?", como eles fazem até hoje com os franceses por causa da segunda guerra mundial.

Poesia nada matinal

Como estou me sentindo meio lírico hoje (deve ser coisa de pré-feriado, como se fizesse diferença quando você está preso em casa pela corrente do desemprego), vou postar quatro poemas bem bonitinhos. Não, nada de cara feia. Leiam ou vão pro blog da Vanessa Camargo, faizfavô.

O primeiro é um troço que eu escrevi ainda na época da ETFRN, quando achava que namorada se arrumava com poesia. O segundo é uma visão da Mona Lisa, que me ocorreu quando vi na casa de um amigo de meu pai, uma excelente reprodução da mesma, emoldurada: coisa de quinze, vinte anos atrás. Não estou certo. Os dois últimos foram os que escrevi para Thatiane no dia em que começamos a namorar.

 

MÁRMORE

Meu nome é Mármore.
E ainda não encontrei
a mulher que fosse
como arrebentação,
língua fria de água
lapidando a rocha,
desgastando a pedra nua
com insondável paciência,
até revelar seu interior de carne
travestida em homem
e sangue
e seus desejos.
Por isso eu procuro pela mulher
que seja mar.
Por isso eu sou Mármore.

 

The Hanging Picture

She hangs there, surrounded
by fine wood — canvas
and all.
Even the paint — acrilics
with oil
stroke in glorius, frozen
serendipity;
yet
in the middle, the early beggining
of a smile
knotting muscles
in an arc of perfection, geometrics
with angled and curved bliss:
the ever-living eyes
— century after century —
to the gleaming
mirror
that faces her
in the hanging walls:
— Mona Lisa smiling
through the ages.

 

Castanho

Existe algo sob seus olhos
— quase como um sorriso —
Que brilha e dança,
castanho sobre castanho
dando voltas sob a luz.

Não que eu possa entender:
Tens segredos por demais profundos,
Portas sobre portas
Com cadeados e combinações.
Minhas chaves são frágeis
— Sou um pequeno ladrão
na casa do amor —

Mas também és um telégrafo
Sem fios
Mandando sinais,
Como eletricidade viajando à noite,
sobre os sonhos do mundo
em círculos, em raios
em secretas mensagens
até mim.

Meu coração sozinho
Ressoa contra a cortina da noite.
Seu ritmo não cansa,
Fervendo,
Elevando à tona do mundo
Um sutil mensagem
Para grandes olhos castanhos:
“Sou um telégrafo sem fios,
Um sinal sem códigos.
Só tu me entendes,
Só tu me decodificas”.

 

Tive um sonho:

Toda a elegância de um baile
No movimento de duas mãos:
Marfim e seda
Sob os holofotes, deslizando,
Captando brilhos
(talvez de pérolas, talvez brilhantes
— quem o saberá?)
e reflexos
Na cadência firme da valsa.

Fluindo sobre o mármore frio
Os pés calçados não conhecem
Cansaço algum. Apenas
Secreto prazer,
A certeza da mão contra a outra,
Ombros macios
A confortar o peso de uma vida,
Talvez curta demais (quanto,
pensamos, dura o brilho de uma vela?
O amor responde:
“anos não são o bastante
para se contar”).

A música prossegue,
A noite vai.

A noite toda
Eu e você
Até muito depois
Da música terminar.

20.4.04

Gangues de Nova Iorque

Eu tenho uma mania de assistir filme velho.

E por "velho", eu quero dizer aqueles filmes que todo mundo já assistiu já faz o quê - dois anos? - Minha nossa senhora do livramento, Petras, COMO você ainda não assistiu esse filme?

Até os cinemas começarem a fazer sessões de graça, enquanto eu estiver desempregado, ou sessões em horários aceitáveis para seres humanos, quando eu estiver empregado, vai ser assim.

Alguém já viu?

Embora comece meio morno, meio clichezão, com o filho tendo que vingar a morte do pai quinze anos depois, e acabe meio que se afeiçoando pelo assassino (que lhe é como um pai), do meio pro final a coisa muda de figura. Vira uma coisa de contexto social, histórico e político, onde o que mais me saltou aos olhos foi a constatação, pela ótica dos próprios americanos, que eles são uma das raças mais xenófobas do planeta. Não perdem pros árabes, pros ingleses, e muito menos pros japonenses.

O interessante é o quarto final do filme, uma batalha campal de confronto urbano, onde o exército marcha sem muito alarde sobre ruas cobertas com os cadáveres da pobreza, literalmente até a canela em sangue da ralé. Todo o conflito se concentra mais nos bolsões de pobreza, de absoluta marginália e excllusão. Embarcações de guerra disparam contra a população amotinada no clímax que deveria ser aterrorizante, mas que não chega nem perto de um sábado à noite na Rocinha.

E foi isso que me deixou mais - sei lá, acho que mais desgostoso, mais incomodado, com aquela proverbial pulga atrás da orelha.

A coisa toda é igualzinha à situação da miséria em nossas terras tupiniquins. A polícia afogada na mais profunda e irreversível corrupção, a massa abrutalhada da miséria sendo comandada por alguns poucos iludidos que crêem ter alguma soberania porque têm poderes de vida e morte sobre meio milhar de miseráveis, ladrões e mendigos e uma pequena e soberba elite olhando a coisa toda como uma atração turística interessante e perigosa - à maneira de um safári na África.

Eu costumo lembrar muito dos posts desesperados da Denise sobre a situação do mundo - sobre a estranha condição de violência e miséria que assola nossa espécie - e penso como ela é sensível demais, como ela se deixa abater pelo "prato do dia" da mídia, tentando distrair a atenção para a verdadeira imundície lá na cozinha da realidade.

Mas não posso deixar de me sentir um pouco como ela, às vezes. Tem uma frase do filme, dita por um político, e apesar de sua origem, tão verdadeira quanto os caminhos que fazemos nesta vida: "aqui, paga-se metade dos miseráveis para que matem a outra metade".

Ah, Brasil, não mostra tua cara, ainda não. deixa eu pelo menos terminar de comer, senão volta tudo.

19.4.04

Sobre o comercial da Pepsi

Todo mundo já viu o comercial novo da Pepsi, né?

Claro que já.

É aquele onde a Britney, a Beyonce e a Pink posam de gladiadoras, cantando "We Will Rock You" e jogam o césar Enrique Iglesias no poço dos leões.

Claro que todo mundo lembra - a Vanessa até fez um post MATANDO o videocl - ops! - a propaganda. Certo.

Mas vamos abrir um porém - você pega três gatas (tá, a Pink não é isso tudo) vestidas de gladiadoras sexy, com biquininhos de metal que só não fazem esconder nada, agarradas com lanças, tridentes, redes, espadas e tudo o mais, suadas, animadinhas, debaixo daquele sol romano de trocentos graus, as armaduras faiscando no meio-dia, para logo em seguida detonar um rockinho bacana, meter um pepsi gelada na boca (valha-me Deus!), sorvendo-a como se o proverbial líquido da vida (OK, podem ler nas entrelinhas aqui) ali estivesse, e ainda derrubar o Enrique pra virar gagau de leão...

O QUE SATANÁS TEM DE ERRADO NISSO?!

Quer dizer, da última vez que eu prestei atenção, meus cromossomos ainda estavam na mesma sequência alfabética, eu NÂO havia sido educado em uma cultura com propensão ao matriarcado, e NÃO, NÂO, de jeito nenhum, eu ainda não havia começado a fazer assinatura da G Magazine ou coisa que o valha.

Aí eu chego a conclusão:

Não há nada de errado no videocl - ops! 2, a Missão - na propaganada. E se houver, é que as três estão vestidas demais. Aliás, bem que todas as propagandas de refrigerantes poderiam ser neste nível. Como a Nessa comentou, poderia-se até fazer uma versão nacional, com o Felipe Dylon, a Kelly Key e (minha adição) a Pity. Aliás, no lugar da Pity, coloca logo a Solange do Big Brother e põe as três cantando "We Are the World" em um cenário apocalíptico bem Mad Max, em pleno Morro da Rocinha 2050, aquele troço bem cyberpunk mesmo, com o Felipe Dylon presidindo um coliseu de barracos em cujo centro pit-bulls e rottweillers geneticamente modificados para serem aparentados com tigres, crocodilos e dragões de komodo irão destroçá-lo ao final.

O refrigerante pode ser qualquer marca - ninguém vai estar interessado nisso mesmo...

Promessa é dívida...

...mas até o Lula me dar um emprego, eu não pago as minhas.

Certo, certo, antes que alguém jogue alguns tomates poderes virtuais em mim (ou outros legumes de igual olor e consistência quando podres), tem uns detalhes novos:

O Dudu me indicou um site muy legal, o Seventh Sanctum, onde, entre outras tranqueiras online, tem geradores de nome de tudo que é porcaria (em especial, para RPG), e até geradores de plots de anime, filmes de ação, o escambau! Vale uma visita. O Weir Names Generator me saiu com "The Mysterious Child with a Heart of Amethyst That Owns the Valley of Chaos" e "The Screaming Tsar Who Makes the Ever-changing Manse and is Anointed by Titanic Desolation". O que mais eu quero da vida, além de US$10.000.000,00 na minha conta bancária?

Não, eu não fui ainda assistir a Paixão de Cristo. Fiquei com medo depois que soube que um assassino nos EUA, após assistir a película, foi direto confessar um crime do qual ele já tinho sido até inocentado. Se esse cara, um assassino tarimbado (tá, semi-profissional, vamos lá) não aguentou a pressão, o que será de mim?

Em relação aos comentários maldosos e ameaçadores sobre meus reconhecidos e apreciados dotes culinários, o que eu tenho a dizer em resposta não direi, a fim de manter nossa amizade.

E por agora é só.