Esse, eu juro, é o último. Mesmo esquema dos anteriores, e talvez o único com uma estrutura de dialética, de análise comparativa. Chato, mas fazer o quê? Ser menos chato? Fala sério...
Tenda de Milagres
O shopping há muito tempo deixara de ser simplesmente um mercado para tornar-se uma habitação, muito embora não para pessoas — ou pelo menos, não para as vivas. As máquinas moravam ali, onde ninguém mais.
Concentrados em suas tarefas repetitivas, os engenhos comerciais modelavam vitrines, coordenavam compras, revisavam crédito e vigiavam, solenes, seus visitantes, através de um milhar de olhos invisíveis em esquinas, curvas, escadas e colunas. Uma obtusa consciência artificial orientava ciclos de velocidade de passarelas e escadas rolantes, entre o labirinto de lojas e restaurantes, respirando em grandes golfadas de ar perpetuamente condicionado nos presumidamente agradáveis 26 Celsius. Engrenagens que não rangiam nem vibravam faziam as portas se abrirem, barreiras estanques entre a realidade abafada de lá fora e aqui.
O Shopping era um mundo fechado, seguro e inviolável.
Fontes de luz, água e perfumes cascateando plantas artificiais, brilhando falsamente úmidas sobre o também falso mármore.
“Ó vós que aqui entrais, abandonai todo o seu crédito”, sussurrou Paulo. As portas internas abriram-se em silêncio, recebendo-o com um suave bafejo de frio. Ele imobilizou-se na entrada, deixando a iluminação de suposto entardecer banhá-lo por inteiro. Sorriu.
“Pôrra, agora é toda vez?”, Geraldo perguntou.
Um sorriso de resposta. Eles atravessaram o pórtico de entrada, sentindo seus celulares vibrarem sob a análise dos detectores de armas, os circuitos comunicando nome, códigos de identidade e classe de consumo de seus proprietários. Pequenas indiscrições entre máquinas. Entre iguais.
“Veja bem,” Paulo começou, “nós entramos em um lugar onde toda a posse é o que faz de você um componente útil da sociedade, um membro sadio desse grande organismo que chamamos de civilização.”
Geraldo suspirou. Mais um daqueles dias.
“Aqui, a medida de quem você é aparece no peso das bolsas de plástico dez vezes maiores que o produto que você compra, representado por grupo de sinais eletrônicos que representam sua capacidade de se destacar junto aos seus pares, de parecer melhor do que eles.”
“Você anda conversando muito com o velhote.”
“Que é que tem?”
“Velho demais. A galera tá pensando que tem rolo.”
Um sorriso malicioso de Paulo, preparando-se para o bote.
“Quer dizer que quando alguém tem umas idéias legais, você conversa com o cara, você tem que estar levando nele? Ou levando dele?”
Geraldo olhou ao redor. Ninguém interessado na conversa, aparentemente. Bom. Já bastavam as câmeras “Não, mas é que você fica conversando muito tempo com ele depois da aula. As pessoas começam a pensar por quê.”
“Porque ele tem boas idéias. Quer dizer, o cara é velho, ‘gado? Quarenta anos ou mais, ‘gado? Ele é velho, ele lembra de antes dos computadores dizerem ‘por favor’ e ‘muito obrigado’.”
“Hein?”
“Sei lá, foi ele que disse. Também não liguei. Muito velho.”
“Ele tem mais de quarenta, ‘gado?”
“Foi o que eu disse.”
Compradores perpétuos atravessavam o grande átrio de formas suavemente orgânicas, concreto em um casamento arranjado de plástico com fibras metalorgânicas, estruturas que se renovavam anualmente, mudando de cor da mesma maneira que os jeans envelheciam com dignidade, suportando abóbada após abóbada de vitraplástico que deixam a baça luz do dia passar. Uma Meca de veneração dispersa entre as praças de alimentação, os nichos de entretenimento e as onipresentes lojas de moda, refletindo a tendência da última semana, em perene rotatividade.
Os seguranças dispersos em roupas de proteção antibalísticas, disfarçadas para parecer um cruzamento entre ternos e uniformes policiais de cinema, conversando entre si com fones subdérmicos e inconscientemente ajustando o peso desconfortável das armas não-letais nos coldres logo abaixo das axilas. Todos eles recém-egressos das academias de segurança privada, seus diplomas de bacharelado em TSEP II — Técnicas de Segurança Estatal e Privada — emoldurados na parede, como um relicário. Alguns ex-policiais, a maior parte formada de estudantes de direito que acreditaram na fantasia das butiques de modelagem sobre um corpo per-feito inspirar respeito absoluto.
Suas formas onipresentes em uma dança de turnos através dos infinitos corredores do shopping, vigiando, mãos e pernas a serviço da máquina que tudo governa, toda olhos e ouvidos dentro do ambiente de segurança absoluta.
O velho observava a dançarina executar o complexo movimento da coreografia de vendas sobre a superfície perfeita da vitrine, um espelho virtual de bilhões de pixels, pequenos como moléculas, refletindo uma realidade guardada em um cartucho de circuitos óticos do tamanho de sua unha. Os passos, sampleados de sabe Deus quantos musicais de uma era anterior até mesmo à sua, mas que ele podia alcançar quando garoto, graças à máquina do tempo das reprises.
Era curioso, como a música mudara tanto e ao mesmo tempo tão pouco. Os ídolos do rock tinham se tornado super-heróis da ficção científica, feitos para consumo não apenas de música, mas de intrincadas séries de clips em formato de seriado, com estórias de interligação difusa, aparentemente desconexa, mas que deixava entrever profundas camadas de enredo, com insinuações de filosofia, sociedade e cultura. Tudo para vender bonecos articulados, refrigerantes e camisetas videoativas.
Os ídolos da semana. Era só o que se podia almejar. O megamercado de mídia, agora praticamente sob uma única bandeira, se permitia ao luxo de projetar apenas um ícone máximo de cada área. Apenas um maior cantor, uma grande banda, um máximo megastar. Mais que isso e as garras ávidas dos abutres de terno desmembravam a estrela-por-vir em um frenesi de processos cautelares de copyright e reserva prévia de nicho cultural.
Suas décadas traziam uma série de lembranças incompatíveis com este novo mundo, que ele vislumbrara apenas em seus sonhos mais estranhos: uma insólita mistura cinematográfica de Blade Runner, 1984 e Metrópolis. Utopias desfiguradas pelo clichê e pela inevitabilidade do óbvio. Sentia falta do passado não como uma casa, mas como uma família. Oitenta anos de caos controlado fizeram do mundo um lugar mais confortável, talvez para a maioria das pessoas, mas não fora sempre assim? As coisas mudam, e quanto mais mudam, mais permanecem as mesmas. Tinha sido assim com os espaços ao seu redor. Rádios, televisões, computadores, a rede... Mas as pessoas.
Não esperava que as pessoas mudassem tanto quanto nestas últimas três décadas.
Uma espécie de juízo final feito em grande parte de apatia, delineado cuidadosamente com uma mistura precisa de reverência e deslumbre dominava a todos. Felicidade? Sim, com certeza. Mas não felicidade de verdade. Era mais uma coisa abortada prematuramente de limpos designs europeus, celebrando uma falsa multi-culturalidade, onde a única coisa múltipla eram as escolhas pessoais sobre variações de um mesmo tema.
Nove caracteres alfanuméricos variáveis para cada homem, mulher e coisa viva ou pensante sobre a superfície da terra.
Classificação, impessoalização, ordem e progresso. Não exatamente nesta ordem. As grandes conquistas deste século, deste novo século já tão perto do fim, prenhe de novas maravilhas — que ele suspeitava, em silêncio resignado, serem tão vazias quanto as deste.
Lua, Marte, Vênus, Europa e Plutão. As novas fronteiras já devassadas por exércitos de máquinas microscópicas, terraformando o território virgem do amanhã para legiões de compradores apressados e turistas. Nunca há tempo para se ver a paisagem — ergo, a paisagem não é necessária. Talvez em dez anos existam shoppings em Marte. Em mais trinta, condomínios de luxo em Vênus, sob vinte e cinco milímetros de chuva diária. As perenes geleiras de Europa convertidas em uma colossal nuvem de vapor para o efeito estufa. Oceanos de peixes geneticamente adaptados para atender as necessidades alimentares de bilhões.
Duvidava deste último. A fome, entre todas as novidades, era uma constante imutável.