13.3.04

Super Gêmeos

Essa do Kibe Loco eu não resisti. Preste bem atenção, Yuri:

Reminiscências de um último cigarro...

São três da madruga de um sábado já despertando e eu escrevo estas linhas degustando um Bacardi Lemón e apreciando meu (queira Deus) último cigarro...

É engraçado quando penso na minha vida de fumante: comecei cedo, lá pelos treze, catorze anos, soltando umas fumaças aqui e acolá, uma vez por mês, talvez para deleite dos meus amigos, ou talvez para me sentir adulto - sei lá. O que importa é que essa prática só chegou ao ponto de me levar a comprar as primeiras "carteiras" de cigarro (um Free seco e sem gosto) aos dezoito anos. Não haviam muitas restrições em casa - meus pais eram fumantes: minha mãe, de longos Ella, ou Pall Malls de embalagens exóticas e meu pai, de cachimbos e charutos de odor oloroso, quase perfumados. Assim, quando me viram pela primeira vez lançando fumaça pelas narinas adolescentes, houve apenas alguns comentários breves sobre não fumar demais e todo aquele tipo de coisa.

O vício pesado veio com o meus primeiros trabalhos em agências de propaganda: doze horas de trabalho diárias acompanhadas de três (sim, eu disse três) carteiras de cigarro.

Às vezes, quando saía para beber, alimentado pelo inexplicável mecanismo de consumo entre o álcool e a nicotina, alcançava a casa das quatro ou mesmo cinco carteiras. Era a época dos Lucky Strikes, Carltons, LMs e o habitual Benson&Hedges mentolado ou sabor canela.

Quando me casei pela segunda vez (era 92 ou 93, nunca me lembro ao certo), minha então esposa era fielmente alérgica à fumaça de cigarro. Os nossos seis anos de interlúdio amoroso foram passados em absoluta abstinência nicotínica. Acabou o casamento, voltaram os cigarros.

Em 2001 ou 2002 (eu nunca lembro direito), uma consulta ao gastroenterologista confirma a suspeita: duodenite aguda (gastrite das brabas para vocês, leigos ignorantes). Eu reduzi o fumo a coisa de no máximo uma carteira por dia. Há uns oito meses atrás, notei que havia voltado - independente dos perigos para a duodenite - a fumar nos mesmos níveis anteriores.

Decidi parar de vez.

Passei heróicos cinco meses sem encostar na nicotina. Até meus cachimbos e charutos bem-amados (herança de meu pai, que praticamente largou o hábito em anos recentes) foram deixados de escanteio. A duodenite dava sinais de melhora e nem refluxo noturno (é quando a sua bile sobe estômago acima, queimando tudo no caminho e depositando-se na fronha novinha) eu tive mais.

Aí eu voltei a fumar. Coisa de duas, três semanas atrás.

Estresse, tensão - saindo de um trabalho, o outro não dando certo - crise da pré-ante-meia-idade, essas coisas. Vocês sabem (e se não sabem, ainda vão saber). E tome meia carteira de Hollywood Menthols por dia.

Aí eu enchi o saco de novo, decidi que essa vez era definitiva. Pronto. Chega. Agora danou-se.

E esse foi meu último cigarro, fumado há exatamente vinte minutos atrás, horário em que posto este desabafo - que bem sei - será lido não sem algum alívio dos meus "colegas" (pra não deixar Neílson de fora) e amigos que não fumam e nem pretendem (bando de pederastas sicofantas não-fumantes!).

Espero que desta vez eu demore mais um pouco, porque o difícil não é deixar de fumar: é deixar de voltar a fumar.

Teoria e Prática dos Filmes de Ação

Escrito após uma madrugada insone de maratonas de Matrix, Kill Bill e aquele veado do kung fu - como é mesmo o nome dele? - ah, são tantos...

 

Há um conjunto de regras naturais, de leis físicas, que explicam tudo. Se você as estudar bastante — e eu quero dizer bastante —, o suficiente para fazer seus neurônios sangrarem, marcando-os com uma nova visão de mundo, uma nova liturgia da realidade na sua consciência, você entenderá porque elas não fazem nenhum sentido.

É como uma palavra: diga panela trezentas vezes e a própria idéia, o próprio conceito de panela deixa de fazer sentido. Não há mais uma ligação entre o objeto e sua representação fonética ou simbólica. O mesmo acontece com as leis do mundo.

Uma dessas leis fala sobre a trajetória que as balas de uma submetralhadora MAC-11 calibre quarenta fazem quando disparadas em modo automático de uma arma precisamente lubrificada, enquanto seu corpo gira cento e oitenta graus no ar, desviando-se de estilhaços de janelas presumidamente à prova de balas. Existem mesmo essas regras, Elas podem ser aprendidas e saturadas, resultando no seu total esquecimento.

Eu entendo que a realidade é como você quer que ela seja, e no meu caso, é um caótico e movimentado episódio de filme de ação, uma transposição cinematográfica multimilionária de uma história em quadrinhos sobre o que acontece quando a sua vida pula da janela do último andar.

Não literalmente.

Não há queda, ao início, apenas a noção de que o mundo é absurdamente maior, muito mais complexo e completo que você imagina, que há essa noção, essa — consciência — de completude sobre ele, que todas as coisas simples que você buscava em sua vida eram tão pequenas e mesquinhas, que não fazem mais o menor sentido, que são tão perfeitamente irrelevantes que você pode simplesmente jogá-las fora e esquecê-las completamente. Que seus ideais, credos, códigos e elementos de caráter eram tão bidimensionais quanto a personalidade de um coadjuvante de filme B.

O novo mundo aguarda por você.

E o velho mundo se torna seu inimigo mais mortal, como um supervilão de quadrinhos, jamais morrendo, sempre retornando pelo artifício do clone, da réplica andróide, da viagem no tempo, do sonho ultra-realista, da possessão psíquica — da mera lembrança de que ele um dia já existiu. O sonho do seu passado está sempre nos calcanhares: um dragão velho, rancoroso e com uma ânsia brutal de vingança. E você o enfrenta, trançado em conflito como se os deuses combatessem embriagados em brigas de bar, facas e punhos e cusparadas e chutes na virilha desprotegida.

Tudo isso e armas que jorram chumbo entre reflexos estroboscópicos de luz e artes marciais ocidentais: o Gun Fu, o golpe do Dedo da Morte sobre o Gatilho da Destruição Final. Todos os velhos monstros e demônios adormecidos no aço gelado e mortalmente invulnerável de seus corpos de formas tão anatomicamente perfeitas, mais complementares a mãos e dedos que uma espada ou faca. Ou mesmo uma evolução das mesmas — grandes armas de lâminas cegas, brutas, cujo comprimento alcança várias dezenas de metros — as grandes lanças com H&K, SigSauer e Colt gravadas em seus corpos de titânio, aço e polímeros sendo capazes de chegar às centenas de metros, aos mágicos milhares de metros, o inimigo caindo morto como se por vontade ou ira divina, seu coração, cérebro, espinha e intestinos dançando no ar em uma chuva de fragmentos pulverizados pelo poder de sua absurda precisão. Pelos passos da morte presos na dança de um tiro, uma morte.

E o velho dragão jamais vence. Pois você já o venceu antes, e tudo que ele pode fazer é persegui-lo. Cruzar oceanos e mares de caos, de gloriosa probabilidade em busca de sua carcaça liberta de suas garras de tédio, conformismo e coincidência. Você pode sentir seu cheiro à noite, pode ouvi-lo sussurrar ameaças na estática do telefone, procurando tentá-lo aos prazeres obscuros que permeiam o bom combate, como se seus desejos fossem uma realidade filha do dragão, como se não fossem parte de você, de seu íntimo mais pessoal — Alma, Mente e Zen.

Neste momento de ângulos perdidos, de paredes de concreto tilintando frágeis com os golpes que trocamos em nossas danças de destruição, balés complexos com megatons de incandescente fúria apertados firmes nas mãos, esperamos ansiosos pelos socos precisos, contra ossos e peles e órgãos e blindagens e couraças ditas invulneráveis, sentindo o regozijo tão deliciosamente sutil neste bailado marcial de saltos e rasteiras e pontapés. O combate brutal, feroz, metamorfoseado — destilado na sua mais perfeita forma de arte. Movimentos que se integram a todos os outros, onde até quedas e ferimentos são ensaiados, derrotas menores precisamente acumuladas no rumo à devastadora vitória final. Pode ouvir os quarteirões do mundo, as ancas centenárias do dragão gemendo com o esforço, enquanto combatemos seus capangas de pesadelo, correndo sobre as costas de arranha-céus, suas peles feitas de três centímetros de vidro anti-tempestade? Nossos passos suaves de trator deixando sulcos delicados nas coberturas reflexivas, o ímpeto de nossos momentos angulares, maiores que as leis da aerodinâmica, fazendo ruir os editais da gravidade, os protestos das leis de conservação de energia, de movimento e de anatomia (tudo isso há tanto tempo deixado para trás, há tanto tempo abandonado como um conjunto de regras que alguma criança achou por bem colocar em seus jogos de faz-de-conta e nunca pensou em mudar depois que cresceu. Bem, o faz-de-conta acabou).

A física deixa de ser o território de Newton, Einstein e Hawking, e passa a ser de Woo, Tarantino e Worchowski. O mundo torna-se o nosso playground.

Brincando de polícia e ladrão nos campos do Senhor.

Pense na fúria cegante destes encontros, dessa elétrica sexualidade de arcanjos guerreiros, de senhores da morte certa, de protetores da arma sagrada semi-automática de infinitos disparos, deitando miasmas de pólvora como o fog escarlate das praias da Normandia em um Dia D, o chão coberto de cápsulas acobreadas — o tapete vermelho de nossa cerimônia de morte.

Mas não há Morte. Nunca há morte. Ela que é nossa aliada, empregadora — o patrão para o qual fazemos entregas anônimas, não importa a hora, não importa o dia. A vitória absoluta de comissão.

E no final, no prólogo apocalíptico — talvez apócrifo, talvez definitivo — em encontros que a elegância pede não contar além de três, nós nos encontramos pela última e definitiva vez, para termos certeza, para soprar suas cinzas no coração de uma estrela, para enterrar sua cabeça no solo árido de um planeta esquecido e para guardar seu coração em um pote de reluzente salmoura, postado sobre a prateleira de troféus (mais um entre tantos outros).

E ele volta mais uma vez.

10.3.04

Ulisses em Marte

Há um bom tempo atrás, na época em que a NASA mandou seu primeiro robozinho pelas planícies e canyons de Marte (acho que em 99), eu escrevi um poema em homenagem àquela pequena máquina que todo dia acordava ao som de ô coisinha tão bonitinha do pai... Ontem mesmo eu vi no site da NASA as peripécias de seu irmão mais novo, mandado há pouco tempo, e me lembrei do poema, que posto logo abaixo. Espero que o inglês de vocês ainda esteja bom das pernas...

Ulysses in Mars (dedicated to souljorner)

Postals from the solitude planet:
its sand cathedrals
Roam
through the dead wilderness
of shining scarlet.
Nothing there moves by itself
— even microbes, no less
than fossile memories
married with stone.

Fed by the sun,
tiny legtracks grow
large and leave
long clouds
of the world’s dry blood,
peaks and mountains watching
with timeless arrogance
the lonely walk
of the silver-shining toy
over plains so old that
even dinossaurs feel
like newborn children.

All that lasts is its
sun-driven curiosity
lead by a laser cane:
a blind robot-mice discovering
a leg of a world and dreaming
back home in words
that only machines
appeal.

9.3.04

Tinha um vírus no meio do caminho...

Enquanto dirijo a vocês estas mal digitadas linhas, existe uma presença nefasta, nefanda e nectarínica instalada nas entranhas digitais de meu computador. Ela parece ser invisível ao Norton 2003, ao AVG e (aparentemente) ao Avast!, que acabei de instalar e atualizar. Se bem que ele não tem agido nestes momentos cruciais.

O desgraçado age requisitando conexão para um tal de sei-lá-o-quê.mydomaiin.com e quando estou navegando, aparece do nada aquele maravilhoso aviso do Windows XP informando que devido a um erro geral de sei-lá-o-quê, meu sistema operacional será reiniciado em 5... 4... 3...

Algum nerd de plantão aí sabe que tipo de vírus é este e o que tenho que fazer para chutar seu traseiro ignóbil do interior delicado e sensível de meu sistema operacional?

Devo lembrá-los (se bem os conheço) de que não aceitarei sugestões de caldo de galinha, aplicações de vick vaporub ou similares.

Desde já agradecendo a falta de atenção dispensada...

7.3.04

Por hoje é só, pessoal...

Bom, depois de deixar meia-dúzia de posts nessa madrugada insone pós-festa (com uma boa quantidade de cerveja bem gelada e vinho nem tanto), eu me despeço momentaneamente de meus posts (alguns um tanto polêmicos, eu bem sei), e lhes desejo uma boa noite.

Antes que eu me esqueça de vez: Se algum de vocês, desavisados navegantes das ondas etéreas da rede mundial, souberem da existência de um servidor de hospedagem gratuito, que permita rodar ASP, PHP, Cold Fusion, QUALQUER COISA, tenha a caridade de me avisar.

Também aceito que alguém ceda um domínio, sub-domínio, coisa do gênero - esse site de Play-By-E-mail TEM que sair...

Barbie para adultos

Os puristas que me perdoem, mas putaqueopariu, os brinquedos eróticos estão chegando à era da ficção científica. Depois do vibrador de quinze velocidades, do estimulador clitoridiano portátil e do creme de baixa fricção sabor brigadeiro, chega a mais nova façanha high-tech do sexo solitário: as bonecas anatomicamente corretas (bem, pelo menos segundo a ótica de Hollywood) da empresa norte-americana Real Dolls (vejam o link no logo acima).

As criaturas têm um esqueleto de alumínio realista e completamente articulado, recobertas pelo mais macio e sedoso silicone, plásticos e materiais especiais de maquiagem, dispondo de vários "chassis" básicos para você "customizar" a sua amada de plástico, das unhas ao tamanho dos seios. E tem até modelos masculinos (olhaí, recalcados de plantão!).

Chegou ao ponto de ter sites pornô com fotonovelas de bonecos e bonecas entretidos no mais doce esporte nacional...

Pra nenhum tarado online achar que eu estou de sacanagem, pisando nos seus sonhos mais loucos, dê uma boa olhada na foto do modelo "Kaori", logo abaixo:

Antes que eu me esqueça: as beldades de plástico custam em média, o preço de um carro zerinho... Então, garotada, comecem a economizar a mesada desde já: Playboy é coisa do passado!

Bagana de Nerd

stuff for smart masses

O site acima (basta clicar no logo), é uma verdadeira babel de porcarias para nerds, geeks e gearheads, listando desde bazucas de ar, lanternas que não precisam de baterias, relógios com memória USB e outras porcarias que só tarados por informática como alguns de meus amigos se interessam.

Em pratos limpos

Só para esclarecer - os últimos posts devem ter parecido uma gigantesca verborragia virtual, mas tratam-se apenas de alguns pequenos contos que este humilde escrivão tem terminado de polir nestas últimas semanas. Creio que tais posts serão de uma natureza assaz constante. Mas não aguardem coletâneas em série contínua. Ou aguardem, sei lá.

Espero que sejam do agrado de meus conceituadíssimos leitores.

Caso contrário, e com todo o respeito possível, danem-se.

Campanha do caralho!!

Reforço aqui a campanha de utilidade pública, social e humana, iniciada no site do Beto (Lobo), e cujo apelo vocês vêem abaixo:

 

Entre o céu e a terra

Há poucas coisas entre o céu e a terra que me fazem parar. Uma delas foi vê-la atravessando a rua com seu vestido de malha florida, o toque suave da seda deslizando imune contra a pele, que eu acreditava destruidora de lares e corações – o que seria a bomba atômica perto dela? Eu não tinha sequer nove anos, o corpo ainda recendendo a leite e chocolate, mas já tinha o coração voltado para um alvo inalcançável.

Paixão pela professora, pela colega do lado, pela vizinha sardenta – tudo ignorado, tolices menores, meras guloseimas diante da sobremesa suíça de três andares que morava na casa em frente, com longos cabelos lisos — que eu poderia jurar, eram iguais aos de Cleópatra, Helena, Afrodite, de antigas deusas, totens e avatares indígenas em sua mais pura beleza imortal, o melhor que o jardim selvagem da criação tinha a oferecer. Havia uma canção em algum lugar para aqueles seios, uma ode para as coxas, uma ária inteira para o colo, as dobras delicadas da barriga e do quadril — mas talvez nem uma série épica em quarenta tomos fosse o bastante para descrever o que se escondia entre as coxas, o secreto refúgio daquilo que meus olhos não viam nem esqueciam...

Nove anos e toda uma mitologia de pele branca tomando forma dentro de mim, por noites insones regadas a calor, a escuridão morna de floresta, de dias antigos onde o sangue corria mais espesso, mais selvagem, e não havia um só homem sobre a terra que não fosse eu, e ela a definitiva Eva, correndo para sempre nas florestas, as grandes matas e bosques que eram o teto do mundo sob o grande azul de mistério, coberto pelo manto de estrelas à noite — e o meu desejo continuava...

— Não há nada que me satisfaça neste mundo — ela me disse, quando estendi-lhe o ramalhete de lírios pálidos, que inconscientemente escolhi com a mesada da semana, no florista do bairro ao lado — não há nada — repetiu, e então sorriu, abaixando-se até a altura dos meus doze anos, e beijou-me no rosto, tirando lágrimas à fórceps, coisas escondidas há — quanto, meu Deus, quanto tempo — séculos sob a carapaça que eu agora vestia, sentindo-me frágil, desarmado: tão eu...

Pouco mais restou. Caminhadas noturnas com os poucos amigos, os primeiros cigarros, as ocasionais visitas às bebidas de casa, mal escondidas de meu olho atento, os pequenos esconderijos do dia-a-dia onde eu tentava me suprimir da religião que era ela... Santa atenta de olhares, de atenção perene, de intolerável onisciência.

Não foi senão aos quinze que desapareci da vida, dentro de sua casa — noites inteiras perdidas, molhadas no perfume de sua carne em movimento, da doce e terrível torção de músculos em eterno vigor. Minha breve juventude drenada, fogo de palha perto de sua fornalha de sonhos incansáveis... Que mais me restava?

Cinco anos ficamos dentro da casa e por cinco anos não soube luz do dia, respirando entre a seda fina dos lençóis e a penumbra do seu quarto... cinco anos de bendita exaustão onde, ao final, misteriosamente, me senti homem — e saí para o mundo, sem contudo, sair dela... Os dias caíam um a um, e eu fazia a lida de um lento amadurecer, jamais me importando com o fato de meus cabelos encanecerem com as décadas que se vão, com as manchas que desbotam as mãos, com as pequenas dores de ossos e ligamentos — ela está sempre lá, e seu toque é todo o bálsamo que preciso.

São noventa anos agora, ao lado dela, com a paixão ainda brilhante no canto dos olhos, embora meu corpo já não conheça mais o caminho para seus portos secretos, para seus eternos momentos de ápice — mas ela me trata com todo o cuidado que somente séculos de hábito poderiam conhecer. Ainda tão adorável com a imóvel beleza que o tempo apenas retocava, distraidamente, uma ruga aqui, outra, talvez — quem sabe — quinhentos anos depois...

Talvez por um tempo maior do que eu me conhecia enquanto espécie, ela já estava lá, vida após vida, com a eterna paciência de me encontrar, para de novo entender o amor — da maneira que só os mortais são capazes, encontrando-me sempre pronto, sempre disposto, sempre tão tolamente apaixonado... Repetimos, uma vez mais, um ciclo maior que a história de todas as civilizações humanas, morrendo e voltando, com uma idéia fixa, uma promessa, um desejo.

Cumprindo o sacrifício que às vezes se faz por uma mulher, quando ela é a única no início dos tempos.

Quando é tudo que existe entre o céu e a terra.

Bebum

Ele aproximou-se de mim com lentidão, num arremedo de furtividade cambaleante, traído pelo inconfundível halo de álcool à sua volta. Tropeçou de leve numa cadeira, murmurou uma litania de desculpas ébrias para ninguém em particular e continuou a vir em minha direção.

“Curso de colisão”, pensei, e beberiquei novamente da água. Bem, ele ia ter dificuldade em filar algo alcóolico comigo — meus últimos centavos tinham ido embora na garrafa de água mineral, agora já no último gole. Ele equilibrou-se, aparentemente praguejando contra a gravidade e todas aquelas heresias newtonianas, e apoiou as mãos no recosto da cadeira ao meu lado.

“Com licença”, rosnou, quase com carinho, “posso conversar com você?”

É, me pegou de surpresa. Dinheiro, bebida, comida — tudo isso eu esperava. Mas conversa?!

Dei uma olhada: uns quarenta, quarenta e cinco anos no máximo, barba por fazer, boné de napa preta imitando couro, bem apertado na cabeça. A camisa puída, folgada — mas ainda respeitável — sobre o jeans resistente. Um velho par de tênis que já viu mais estrada do que seria saudável para um calçado. E uma revista da Turma da Mônica pendendo na mão esquerda, enquanto a outra carregava um cigarro já pelo final. Sem aliança. Sem nenhum adorno. Apenas um relógio velho preso pela pulseira de couro roído, frágil.

Coloquei o livro de lado e lhe dei meus dois tostões de atenção.

“Você é um rapaz de respeito”, começou, com o rosnado rouco que parecia ser sua voz de sempre, “e sabe que eu também sou um homem de respeito.” Era uma afirmação. Balancei a cabeça, por puro hábito. A maneira como ele falava não pedia para ser confirmado, mas eu o fiz assim mesmo.

"É por isso que eu lhe digo que não estou aqui para lhe tomar o seu tempo e nem para lhe pedir dinheiro." E foi aí que ele me fisgou. Se não queria nem uma coisa nem outra, necessidades habituais do cachaceiro de carreira e profissão, o que seria?

"Olhe aqui", rosnou novamente, num tom entredentes, de rachar o pré-molar, que até hoje consigo lembrar mas não imitar, e me estendeu da carteira puída como a imagem que eu tinha seu fígado, uma foto pouco maior que um três por quatro, provavelmente recortada de uma foto maior.

Na foto, um garoto de seus sete ou oito anos (nessa idade, quem poderá dizer?) sorrindo cheio de dentes para a lente da câmera ou o que quer que estivesse por trás dela. Cabelos curtos, cortados rentes, lisos e brilhantes. Uma ponta de camiseta listrada e alguns balões por trás da cabeça. Provavelmente um aniversário, mas até aqui já deduzi demais e decidi deixar por isso mesmo: uma foto e pronto. Só me dei ao luxo de achar que o garoto parecia feliz.

"Meu filho", disse, não sem uma ponta de iceberg cheia de orgulho, "meu menino". Ele olhou a foto por alguns instantes, talvez quase esquecido do porquê de haver me mostrado, e a recolocou na carteira, que um olhar rápido confirmou o quase óbvio e talvez um tanto preconceito: vazia.

"Ele é um rapaz de respeito, como você." Uma pausa. "E é por causa dele que eu lhe pergunto: você pode me ajudar?"

Àquela altura, sabe-se lá por qual motivo ou processo psicológico, espiritual ou econômico, eu estava pronto a derramar qualquer dinheiro que eu tivesse na carteira do desgraçado. Mas a verdade é que eu não tinha nada mais do que as passagens de volta para casa (em forma de tickets estudantis), e não podia fazer mais do responder um "não" constrangido, que ele tomou pelo que era. Levantou-se com uma espécie de orgulho roto, roído, mas ainda intacto, fez uma quase continência, voltando-se lépido nos pés trôpegos e desapareceu na maré de gente que enchia a praça de alimentação do shopping nos finais de semana.

Levei um bom tempo para voltar a ler o livro, e o que restava da água mineral desceu não sem alguma dificuldade, muito embora até hoje eu não saiba bem precisar o porquê.

É a seda rasgando no ar...

Embora pareça, à primeira vista, não é nenhuma apologia às drogas, que sou visceralmente contra E a favor, pois elas nunca estão por perto quando você precisa delas, e você leva dois anos pra descobrir que tem uma boca de fumo a dois quarteirões da sua casa. É nessas horas que você repensa seriamente a sua política de isolamento da vizinhança.

Mas a rasgação de seda foi sobre a presença nefasta, nefanda e noviça dos queridos amigos Neílson (não, Neílson, você não é um colega. Pois de colegas a gente não se dá ao trabalho de falar mal, esforço reservado só aqueles realmente próximos a nós) e Pablo (que mesmo distante, ainda mantém a fina e sutil arte da facada, desenvolvida e transformada em expressão artística, filosófica, tântrica e metafísica pelo sensei Gabriel).

Também marcando presença o companheiro blogueiro Finado Dante, que em seu blog desfia a fina arte da escrita e do relato do cotidiano em pequenas verdades mal mentidas que fazem o cerne de tudo aquilo que gostamos e que chamamos tão meramente (e talvez, erradamente) de ficção.

Agradeço pela presença, pela força (embora eu soe meio como Netinho do Negritude Júnior), pela amizade e pela facada nas costas na hora certa.