18.8.04

Escribas da Madrugada

Outra noite dessas eu tive mais um desses sonhos esquisitos. Daqueles que você só conta pro terapeuta depois de muito sofrimento, choradeira e garrafas vazias de uísque paraguaio. O mais curioso é que eu não participava do sonho. Nem como personagem, nem como espectador onipresente - nada disso - o sonho me foi narrado, pela voz de um garotinho de não mais de nove anos.

Óbvio, tinha muito mais coisa no sonho, muito mais conteúdo que me foi contado, mas o que coloco aqui foi o que coube no Bloco de Notas logo após acordar, ligar o micro e começar a digitar. Enfim: um mundo como o mundo, mas onde todos lêem pensamentos, onde a absoluta, completa maioria da população é telepata. E suas crianças.

 

I Dream of You, I Die of You

Nós aprendemos sobre a morte cedo, bem cedo.

Aprendemos em viagens de campo, em excursões, no dia-a-dia. Nós a vemos acontecer o tempo todo em pequenos animais e plantas, em pequenas coisas que cercam e preenchem o mundo e muitos jamais percebem que estão vivas. Uma flor murcha, resseca e cai — alguém diz que ela então morreu.

Mentira. Ela já havia ido há muito, o que muitos chamam de morte sendo apenas a dívida final sendo cobrada, sendo paga.

Pequenas coisas nós podemos entender — suas vidas curtas são repletas de pressa, como se soubessem quão pouco é o tempo que têm. Ouvimos o suspiro final de ratos, insetos e lêmures, chamando pela companheira, pela prole, por comida, por algo que lhes leve a dor embora. Os adultos deixam, indulgentes, que nós os ouçamos morrer, dizem que não fará mal — outras coisas vivas são tão diferentes de nós que não suscitarão mais que uma pequena lágrima, um momento de saudade e nada mais.

Mas não nos permitem que escutemos as mortes de outros como nós, suas elaboradas can-ções de despedida, seus requiéms de abandono, de desesperado Nirvana. O que há além da morte, nenhum de nós sabe, nenhum de nós entende. Os adultos dizem que ninguém pode saber ao certo, que ninguém pode contar — ninguém voltou para dizer as viagens no mundo além do mundo.

Mas quanto a nós?

Quando eu era uma criança — e todos nós éramos, então — um de nós, em uma excursão na floresta, foi picado por algo menor que podíamos perceber, um inseto ou outra coisa que deixa uma pegada tão pequena em nossos ouvidos que não é possível saber jamais que ele esteve ali, e o que fez. O nosso colega caiu e se retorceu por um instante, gemendo baixo e suando em profusão.

Não havia adultos por perto, e ninguém podia alcançá-los, chamá-los, um grito, nada. Fizemos um círculo ao seu redor e alguns tomaram sua mão, tocaram seu rosto, afagaram seus cabelos. Ele fechou os olhos por um instante e se foi, diferente da chama da vela que se extingue no sopro do vento forte. Os animais e insetos ao redor calaram-se, e por um instante interromperam suas caças, fugas e cópulas, como se tudo o mais fosse alheio a este momento. Todas as pequenas coisas pararam um instante, como se sua dádiva fosse para que ele pudesse morrer com tranqüilidade, em silêncio e em paz.

Vimos então que também somos pequenas coisas, e que ao morrermos, ninguém notará nossa morte.

A não ser outras pequenas coisas.

16.8.04

Domingo in concert

Pois é: neste domingo, ao invés de descansar, trabalhar um pouquinho, estudar, ou fazer fosse lá o que fosse (até catar piolho em cabeça de careca servia), eu resolvi acompanhar minha esposa e uma amiga a um show imperdível, coisa que só se vê uma vez na vida: algo assim como a morte, em qualquer sentido que você possa imaginar.

É melhor eu deixar de enrolar e abrir logo o jogo: eu fui para o maldito espetáculo (se é que se pode usar a palavra) Marina Elali e Convidados. Pior não poderia ser. Ou melhor, até poderia, mas pesadelos eu já tenho sem nem procurar por eles, então vamos deixar assim.

Chegamos no Machadinho às 15:30h para um espetáculo (tenho que encontrar um termo mais adequado para aquela provação espiritual) que só começou às 17:10h e teve seu fim cerca de uma hora e meia depois. Primeiro apresentaram-se alguns convidados, como os sempre presentes e insuportáveis Pedrinho Mendes e Cleudo, acompanhando Isaac Galvão (cuja voz é melhor que todas as outras juntas naquele arremedo de apresentação), Babau, e outros. Nem gosto de lembrar - meu cérebro começa a não pegar nem no tranco. Finalmente chega a estrela-mor, vestida como se fosse 1987, com vestidinho preto, meias da mesma cor e botas de cano longo combinando - com uma jaquetinha vermelho-pink cobrindo a coisa toda. E mullet. Parecia uma cópia malfeita da Gloria Stefan ou da Maddona, se ela tivesse copiado a Janet Jackson em seus primeiros anos de sucesso.

Inaceitável.

Além de não cantar essas coisas todas e de ter a mesma presença de palco de um portador de síndrome de down com epilepsia (ou seja, deprimente e constrangedora), ela faz uma pose de megastar que não é brincadeira, com todas as caras e bocas a que tem direito. Arrematou com um "como uma deusa" com todo gosto, fechando seu número particular, antes de fazer duetos com alguns amigos de Fama.

E aí a coisa ficou engraçada. Ela cantou uma música inédita de seu próximo disco, Mulheres. Tem uma pedaço que é assim: "Mulheres que gostam de batom / Mulheres que gostam de mulheres..."

Aí eu me lembrei daquele papo dela ser - digamos - entendida, ou para os mais simplórios, sapatão. Já eu prefiro o termo lésbica.

E daí, Petras?

E daí nada, uai!

Só que isso foi a coisa mais interessante do bafafá inteiro. Um amigo nosso que estava na mesa, jornalista e também da tchurma dos entendidos, confirmou que da fruta que eu gosto, a menina come até o caroço, e que foi este o motivo para ela ter sido mandada a Boston para terminar seus estudos. Diz-se que a situação teria ficado compllicada, caso ela continuasse aqui. Socialmente, quer dizer: a província é pequena demais para certos bochichos. Atualmente, ela tem um namorado, mas diz-se que o dito cujo também joga no time do Oscar Wilde. Coisa que claro, ninguém confirma nem desconfirma.

Claro, nada disso é da minha conta, mas no meio de um Machadinho lotado de dez mil fãs de Marina Elali aplaudindo cada macaquice no palco, a coisa mais divertida a se fazer era falar mal de quem estava sob os holofotes.