Outra noite dessas eu tive mais um desses sonhos esquisitos. Daqueles que você só conta pro terapeuta depois de muito sofrimento, choradeira e garrafas vazias de uísque paraguaio. O mais curioso é que eu não participava do sonho. Nem como personagem, nem como espectador onipresente - nada disso - o sonho me foi narrado, pela voz de um garotinho de não mais de nove anos.
Óbvio, tinha muito mais coisa no sonho, muito mais conteúdo que me foi contado, mas o que coloco aqui foi o que coube no Bloco de Notas logo após acordar, ligar o micro e começar a digitar. Enfim: um mundo como o mundo, mas onde todos lêem pensamentos, onde a absoluta, completa maioria da população é telepata. E suas crianças.
I Dream of You, I Die of You
Nós aprendemos sobre a morte cedo, bem cedo.
Aprendemos em viagens de campo, em excursões, no dia-a-dia. Nós a vemos acontecer o tempo todo em pequenos animais e plantas, em pequenas coisas que cercam e preenchem o mundo e muitos jamais percebem que estão vivas. Uma flor murcha, resseca e cai — alguém diz que ela então morreu.
Mentira. Ela já havia ido há muito, o que muitos chamam de morte sendo apenas a dívida final sendo cobrada, sendo paga.
Pequenas coisas nós podemos entender — suas vidas curtas são repletas de pressa, como se soubessem quão pouco é o tempo que têm. Ouvimos o suspiro final de ratos, insetos e lêmures, chamando pela companheira, pela prole, por comida, por algo que lhes leve a dor embora. Os adultos deixam, indulgentes, que nós os ouçamos morrer, dizem que não fará mal — outras coisas vivas são tão diferentes de nós que não suscitarão mais que uma pequena lágrima, um momento de saudade e nada mais.
Mas não nos permitem que escutemos as mortes de outros como nós, suas elaboradas can-ções de despedida, seus requiéms de abandono, de desesperado Nirvana. O que há além da morte, nenhum de nós sabe, nenhum de nós entende. Os adultos dizem que ninguém pode saber ao certo, que ninguém pode contar — ninguém voltou para dizer as viagens no mundo além do mundo.
Mas quanto a nós?
Quando eu era uma criança — e todos nós éramos, então — um de nós, em uma excursão na floresta, foi picado por algo menor que podíamos perceber, um inseto ou outra coisa que deixa uma pegada tão pequena em nossos ouvidos que não é possível saber jamais que ele esteve ali, e o que fez. O nosso colega caiu e se retorceu por um instante, gemendo baixo e suando em profusão.
Não havia adultos por perto, e ninguém podia alcançá-los, chamá-los, um grito, nada. Fizemos um círculo ao seu redor e alguns tomaram sua mão, tocaram seu rosto, afagaram seus cabelos. Ele fechou os olhos por um instante e se foi, diferente da chama da vela que se extingue no sopro do vento forte. Os animais e insetos ao redor calaram-se, e por um instante interromperam suas caças, fugas e cópulas, como se tudo o mais fosse alheio a este momento. Todas as pequenas coisas pararam um instante, como se sua dádiva fosse para que ele pudesse morrer com tranqüilidade, em silêncio e em paz.
Vimos então que também somos pequenas coisas, e que ao morrermos, ninguém notará nossa morte.
A não ser outras pequenas coisas.
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