27.4.04

Lembranças de mil (e mais uma) noites

O texto a seguir é um continho (bem, mais ou menos - quatro páginas), feito em 90, quando eu estava vivendo entre o primeiro e segundo casamentos, e conta uma estória (ou eu deveria dizer história?) quase que completamente verídica. Detalhes dos fatos se perderam na distância da memória, turvos pelo peso do álcool e da nicotina (não, eu não sou o filho do Bukowski).

Como diria o Misael - whatever - aproveitem, se é que é possível. O texto é bem velho, mas achei que valia a pena, nem que seja como valor histórico.

 

MEIO DA NOITE

Acordo bruscamente com o cheiro de pano queimado, ergo a ponta da guimba quase extinta pendendo dos dedos, começando a atear uma mancha larga de fumaça no travesseiro. Lá vou eu com essa mania de fumar antes de dormir. Ainda acabo queimado, acordando no meio da noite com a cama em chamas.

Quem me dera que fosse uma analogia para minha vida sexual...

Mas o que me acordou? A campainha, tocando à meia noite e meia, que confirmo, sonolento, quase dopado, atento no borrão néon do relógio do videocassete. Tropeço até a porta, tentando não acertar o nariz no chão, enquanto procuro pôr uma calça e andar ao mesmo tempo. Consigo (a duras penas) e alcanço a porta.

O olho mágico me dá um susto: Sara.

— Oi, entra — ainda estou piscando os olhos, aturdido com a luz. Vou já fechando a porta atrás dela quando ouço um “ei, espera aí” e quase caio para trás.

Sandra.

Quem eu mais desejava, queria mesmo, no sentido de tesão da palavra. Tínhamos estudado juntos, não na mesma sala, mas na mesma escola (Deus é Pai!). Lembro que passei um ano inteirinho tentando qualquer coisa, desesperadamente.

Se deu em algo?

Não: a minha pose de James-Dean-com-Sigmund-Freud-e-bom-mocismo mais assustava que atraía. Ela achava impossível existir alguém tão bom quanto eu. Ora, eu também . Nem eu acreditava direito naquela pose toda (tem que haver algo errado comigo!), mas fazer o quê: me era natural o conhecimento prolixo e geralmente inútil, a boa aparência e os modos de um gentleman retardado.

Coisas da vida.

Abro a porta de novo e deixo ela entrar, claro, por favor, sinta-se em casa, mas que surpresa agradável e coisa e tal (e cadê meu calmante peloamordedeus, qualquer coisa!). Elas se acomodam na pequena sala, tão chegando de uma festa, morrendo de cansaço, não tinham dinheiro pro ônibus, aí lembraram que eu morava aqui perto, né? Isso tudo e coisa e tal.

Sara me olha com a maior cara-de-pau que já vi num ser humano sem passar do reino animal para o vegetal. Sei muito bem porque ela veio para cá — um santuário de casa, comida, cigarro e bebida por uma noite, além de dinheiro pro táxi depois do café da manhã. Mas tudo bem. Ela cumpria os rituais, trazendo algum sacrifício para o grande-deus-da-casa-de-abrigo-aos-que-saem-de-festas-sem-um-puto-na-bolsa.

Se bem que nem bolsa ela tinha.

Ainda bem que (diferente de alguns deuses) não faço questão de virgens.

Não me entendam mal — a Sandra (segundo as lendas) já tinha transado com meia escola, além dos professores e alguns funcionários mais bem-apessoados. Bom, pelo menos eram os boatos do tempo de escola. E como ela nunca se preocupou em negá-los...

Ah, merda, como se eu me importasse com esse tipo de coisa.

— Fome?

Elas assentiram, ansiosas.

— Certo — sorri — vou fazer um dos meus omeletes Lavoisier!

A Sara fez uma cara estranha.

— Você sabe: nada se perde, tudo se transforma.

Ela riem: eu sou o máximo. Ou, pelo menos, meu ego gosta de acreditar nisso. Esperem até provar do omelete pra ver se continuam rindo. Um não: dois. Aliás, três. E pão, molho tártaro, a salada de macarrão do almoço de ontem, presunto, queijo, ovos e incontáveis garrafas de vinho. Velas acesas no meio da sala, as lâmpadas esfriando no teto. Sombras movendo-se nas bordas do nosso festim noturno.

Clima de final de festa: duas da manhã e Sara acende um baseado na ponta de uma vela. Depois de todo aquele vinho, fico com medo dela explodir, a língua enrola uma piada que nem sei se eu mesmo entendi direito, mas elas riem, todos rimos, meu ego dá um salto mortal triplo para trás.

— Só mais um copo, hein?

Claro, claro. Só mais uma saideira. Depois da quarta eu não prometo mais nada.

— Por onde vocês andavam esse tempo todo? Sumiram uns seis meses, oito?

— Quase um ano. Rodando por aí, por esse asfalto, às vezes, muitas vezes, terra e lama, que cobre todo esse Brasil de meu Deus. Brazilzão, com Z, né, porque já está tudo vendido mesmo, só se salva a birita e o carnaval. Subimos do litoral até Manaus, depois descendo pelo Centro-oeste: Pará, Mato Grosso, Minas, até Salvador.

— E aí?

Numa boa, se viraram por lá. Nem imagino como. Ou melhor, imagino, mas a essa hora a imaginação já nem voa mais: atravessa a barreira da luz em fator de dobra trocentos e dez.

A conversa rola como sempre, macia, ininterrupta, um pegando as deixas, os turnos do outro, mais um gole, mais um cigarro, a última fatia de presunto e não se fala mais nada, só o CD ronronando Barry White bem baixinho, sussurros em barítono na penumbra da sala.

Sara dormiu ali mesmo, apagada, encolhida no sofá. Tirei os sapatos dela, resmungou em sonho o nome de alguém, namorado ou ex-namorado (estados flutuantes da paixão, segundo Sara) e dormiu fundo. Cobri seu corpo miúdo com meu lençol e ajeitei um travesseiro debaixo da cabeça, que ela prontamente abraçou, puxando entre as pernas e eu deixei ficar.

Sandra tirou a calça, ficou só de meias e a camiseta cobrindo a região onde as coxas mudam de nome e perguntou onde era o banheiro.

— Segunda porta do corredor à direita — balbuciei, com uma voz entre elevador e aeromoça.

Ela foi, eu ali fixando aquela imagem dela tirando a roupa, strip-tease casual, um erótico assim como quem não quer nada. Mas queria. Bem, eu queria. Depois de quinze, não, dez, sei lá quantos minutos, uma hora, duas, todas — vida e morte de uma estrela — sua voz me chama.

Os pés me carregam em piloto automático até a porta do banheiro aberta: ela sentada no bidê, não entendi bem porquê, mas que achei supersensual (eu adoro essas coisas cotidianas), cabelo caindo sobre os seios pesados, mas ainda firmes, olhando para mim com aquela cara de eu-tô-bêbada-mas-tome-cuidado.

— Que foi? — perguntei, hipnotizado, sem saber ao certo pelo o quê.

— Tava com vontade de tomar banho.

Suei alguns instantes antes dela terminar a frase.

— Não quer vir?

Eu tinha uma resposta ótima, tirada de um desses filmes que são bons demais para a sessão da tarde e por isso mesmo só passam de madrugada, quando os solitários ocasionais como eu estão acordados, esperando que o mundo venha até eles. Mas naquele instante, eu não me lembrava nem do maldito nome do filme, que dirá a frase.

Fazer o quê? Ajoelhei-me na frente dela, uma genuflexão de confessionário aperfeiçoada por anos de colégios religiosos, e descortinei duas madeixas compridas em um rosto (quando estou bêbado fico poético pacas — além de deplorável).

Me aproximou um beijo.

Quando desgrudei os lábios dos dela, já estava debaixo do chuveiro quente há algum tempo, as mãos engelhadas, o corpo teso e escorregadio.

“Que coisa”, pensei, “ela precisa me ensinar esse truque qualquer dia”.

Barriga colada com a minha, os braços retendo uma pequena lagoa nas minhas costas, levantou uma das pernas, gesto de bailarina, apoiando um pé na minha cintura. Senti uma umidade que não era água.

Começou.

Nenhum de nós falou nada (falar o quê?), não houve ruído nenhum (tecla sound off, mute, hemisfério esquerdo do cérebro, neurona P33). O que quer que eu houvesse bebido, naquela longa noite, o que quer que resultasse daquela alquimia de vinho, comida, fumaça e estórias, fez efeito.

Meu corpo foi traduzido de átomos para forças vetoriais, o jogo de empurra-empurra com a gravidade, o cabo-de-guerra que o magnetismo travava entre si mesmo e a tração do tempo. Sexo era física pura. Não devia ter faltado a tantas aulas. Quarks, múons, léptons, tudo passava pela minha cabeça num torpor de consciência cósmica. As coisas que os deuses devem sentir quando estão chapados. A morte em um manto negro à minha volta, afastadas pelo branco torpor luminoso do sexo. Entrelaçadas em uma batalha de conceitos, de extremos.

Não dei atenção.

Estamos agora de quatro, eu por cima (não tenho certeza), mas sei que há um jato de água caindo em mim, e eu me perguntando como será respirar debaixo d’água, guelras e escamas e tudo. Movo-me em círculos, elipses concêntricas e perfeitas: planetas se movem assim, orbitais de elétrons e luas. Penso que sou um deles, mas não — sou um sol, e ela minha adorável lua, presa em meus braços de gravidade, às vezes eclipsando, às vezes sendo eclipsada neste esconde-esconde de carne e rugidos de água.

Não sei bem porquê, há lágrimas querendo sair de mim.

Uma cascata de partículas líquidas, cinza e prata subindo ao ricochetear na pele, estrelas cadentes em atrito com a atmosfera da pele. Mais lágrimas. Ela nem percebe, é apenas uma forma distante, gigantesca como a sombra de uma divindade indiana, enviando impulsos, ondas de rádio e ultravioleta através da galáxia do box até o rádio-telescópio abaixo da virilha.

Uma montanha que dança o terremoto.

Há alguma luz agora, não sei se lua, reflexo, poste, carro ou holofote, mas diviso seu vulto, uma sombra recortada com fio perfeito, o rosto delicado, suave, inumano, fada, rainha de elfos e duendes. Noto que ainda não estou parado, saindo com ela em meus braços, cavaleiro andante resgatando a donzela do castelo do dragão. Os pés molhados (será sangue da batalha?) deixam marcas na cerâmica que me sabe a rocha cortada em grandes blocos. Caminho em passos falsos no escuro, tropeço e caio, a cama me aparando antes (obrigado, fiel companheira: você não será esquecida).

Deitados num segundo e já começa tudo de novo, escorregadio, lento e quente. Como sempre deveria ter sido.

Só paro para ver que o sol nasceu e que eu tenho que ir trabalhar daqui a duas horas. Ela diz que tá cansada. Eu também, mas nem por isso deixamos de ir até o final, hidrogênio destilando lentamente um fogo de Hiroshimas na minha cabeça, as unhas dela abrindo zíperes sangrentos nos meus ombros: no final é tudo muito simples.

Apagamos num sono tranquilo, exausto, a cabeça dela apoiada num braço que vai acordar dormente, idéia contraditória, mas tudo bem: a noite existiu.

Sete horas da manhã.

O despertador, que ainda vou destruir a golpes de marreta, bipando desesperado para mais um dia, meu Deus, é segunda-feira, vamos correr, o animal de trabalhar está aceso em mim, tomando um café rápido enquanto elas ocupam o banheiro com seus mistérios de mulher que eu tão bem conheço (e não entendo — haverá algo mais apaixonante que isso?).

Ajustar a gravata, limpar óculos escuros, sol filho da puta, terra desgraçada que não tem manhãs nebulosas. Eu devia ter nascido em Londres.

Saem as duas juntas do banheiro, Sandra com o jeans apertado, eu cogito em não ir trabalhar. Mas que merda, tem muito pra fazer e emprego como esse tá difícil. Tudo bem. Outras noites. Outras vidas.

Compro um maço de cigarro, mais outro pra elas, dou dinheiro pra ônibus, metrô, trem, avião, táxi espacial, o diabo. Ela me dá um beijo na parada de ônibus, diz que eu poderia ser o pai dela, se me esforçasse, e sai com meus óculos escuros. O sol tá foda hoje, mas a sensação é boa, sem ressaca nem cansaço. Pego um ônibus cheio, encontro um lugar vago nos fundos e vou sorrindo pro trabalho.

O céu deve ser melhor, mas eu não estou com essa pressa toda pra morrer.

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