31.5.04

As vinhas da ira e seu sumo destilado

A Denise me aviou que o Carlão postou resposta em sua coluna sobre meu mal-estar de uma coluna passada, onde ele misturava Humberto Eco e Jacques Bergier com o apóstata herético do Von Daniken.

Carlão é um daqueles caras quem eu gostaria de conversar em frente a um copo de chope: leva uma dura no meio dos ovos e responde na paz, na tranquilidade de quem sabe seu trabalho bem-feito. Bem que o velho amigo Gustavo de Castro me apontou no caminho certo. Só errou meu nome: Petras, não Petra. Mas deixa pra lá. Se eu me chamasse Flagemíglio (como registra Stanislaw Ponte Preta), seria muito pior.

Só uma questão, e aí não tem muito o que achar ruim - a palavra escrita não permite interação a não ser com o vazio de si mesmo, ecoando sua própria voz em articulações desconexas -, a questão é que eu não o achei preconceituoso ou mal-informado.

Só que ele usou (até aí eu não sabia sobre seu embasamento teórico no caso) de um termo de comparação entre coisas que não têm comparação, como Eco e Daniken (que eu interpretei como falta de informações mais aprofundadas) e jogou no texto a idéia de felicidade versus acúmulo de bens materiais sob a ótica de uma ideologia bem comum (que novamente, eu interpretei como outra coisa, no caso, um pré-conceito - o que não faz dele preconceituoso, ou seja, não é um hábito).

O caso é o seguinte, prezadíssimo Carlão: nem preconceituoso nem desinformado - muito pelo contrário. Quem escreve o que você escreve, e como você escreve, não é uma coisa nem outra. Mas o deslize é uma abençoada habilidade humana que nos faz mais humanos que a divina utopia da perfeição preconiza. O bom de quando a gente escorrega, topa no verbo, no conceito, na idéia, é que a gente aprende com isso. Eu, por exemplo, aprendi a ser um pouquinho mais complacente com gente que eu gosto de ler.

E tem razão: escrever pra jornal é coisa que eu não desejo pra meu pior inimigo, em especial porque provavelmente é o destino deste formando em Jornalismo.

Enfim, não há ira, exceto aquela contra a ignorância e a estupidez (e porque não, a cupidez) humana, coisas que nos separam daquele frágil verniz de civilização que a tanto custo tentamos manter.

Valeu a lembrança do Farenheit 451, do mestre lírico da FC Ray Bradbury, que é a exceção curiosa de um filme ser melhor que o livro a quem deve a origem. O filme de Truffault leva o título às suas últimas consequências e desenvolve um lado humano que a página impressa não possuía. Spielberg como diretor de uma nova versão? Prefiro Kubrick. Mas pensando melhor, a alma de um Fellini renascido no carne de Alan Parker daria ao filme a dimensão humana e social necessária para apreciar-se em som e imagem a força literária de um velho e notável mestre como Bradbury.

E, ainda citando Carlão, a atual invasão do Iraque me lembra a vampiresca invasão de países pobres por reis inimigos, as cruzadas cristãs levando a devastação aos pagãos de Alá sobre as asas de helicópteros anti-tanque e bombardeiros invisíveis. Em certos aspectos, parece que não mudamos nada nos últimos mil anos.

E nem Ginsberg e nem Burroughs, em seus delírios narcóticos aos abismos da alma humana puderam sonhar o dia em que a nação que se arvora como a terra da liberdade pudesse abrir fogo, abertamente, contra mulheres e crianças em frente à TV, como se dissessem:

De tempos em tempos
a árvore da liberdade
precisa ser regada
com o sangue de tiranos.

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