24.5.04

Sonhares

Há muito tempo que eu sonho, e boa parte dos meus sonhos são estranhas realidades entremeadas de detalhes cotidianos que parecem fazer a narrativa mesclar-se com a realidade - me dando às vezes, ao despertar, a impressão de que acordo apenas para uma continuação do sonho, como se o mundo concreto fosse apenas um sequência, uma parte II - a vingança - da minha vida neste outro mundo sem vigília.

E como Neo ou Alice, eu sigo sem hesitar o apressado e lépido coelho branco em seu mergulho no subconsciente, sem olhar para trás e sem fechar os olhos.

Espero que vocês gostem destes quatro momentos sem sem sentido.

 

Sou um homem da lei. Não exatamente um policial, mas um homem da lei. Vivo em um mundo diferente, entulhado por sufocante tecnologia, e ainda assim, um mundo em permanente retrocesso no que se refere a muitos hábitos e costumes. Sou também habituado a resolver casos estranhos, incomuns. Mas não tão estranhos quanto o que me ocorreu hoje.

Estávamos em um enterro, ou pelo menos é assim que me parece: uma noite (ou final de dia) extremamente escur(o)a, conosco em volta de um gramado e uma cova aberta, onde um corpo é depositado. O que ocorre é súbito e nos traz quase o pânico: Uma mulher, disparando algo fino, brilhantemente luminoso e cáustico contra o que repousava na cova - que surpreendentemente, ergue-se e gira de lado, evitando o disparo. Inicia-se a tempestade. De início, penso que conheço a mulher. Mas não: é apenas uma semelhança aguda com uma das policiais, uma ruiva de grandes cabelos revoltos que procura sacar sua arma, três metros à minha esquerda, um tanto confusa.

Os dois combatentes fazem coisas que mesmo nossa quase mágica ciência não alcança. Mergulham na terra, disparam grandes jatos de luz um sobre o outro, movimentos suaves que fazem a terra tremer e o céu tomar formas ameaçadoras. Finalmente, quando tomamos (ou pensamos que tomamos) controle, eles desaparecem. O pressuposto cadáver entranha-se na terra e a mulher some como se por uma fresta no ar.

É mais tarde e estou no meu apartamento, um enorme cômodo quase no topo de um arranha-céu: aqui, tudo lembra madeira e tempos passados. Outros colegas meus estão aqui, me esperando: um técnico legista, outro policial; alguém como eu, um Marshall, que é como eles chamam, creio. E a ruiva. Não estou certo de lembrar seus nomes, embora saiba que os conheço, pois sei pequenas coisas de cada um e lembro de momentos juntos.

Um deles me mostra um filme-sensor da mulher, no momento em que desaparece. O equipamento, similar a um microscópio, só conseguiu as imagens porque ele havia deixado o sensor do seu carro ligado, sem querer, quando fora ao enterro (ou seja lá o que for). Mostra uma mulher entrando em algum lugar no ar. Mexo e giro os controles, até diminuir a velocidade do filme por um fator enorme e descubro mais uma coisa.

- Venha cá. Dê uma olhada nisso - digo.

E ele encontra a mulher, vista pelos penetrantes raios-x, no meio de nada, coberta por um manto de entropia, colocando uma estranhíssima máscara, um momento antes de esvanecer-se.

- E o corpo? - pergunto.

"Desaparecido", responde o técnico. A câmera encontrou, no início, um instantâneo dele penetrando no chão como se fosse água, mas depois...

Toca a campainha. Minha vizinha, uma bela, embora um tanto desmiolada loura, pergunta se eu não tenho uma lâmpada para emprestar, pois a dela queimou. Estende-me uma lâmpada de vidro branco em uma das mãos delicadas. Trago-lhe uma lâmpada nova, da gaveta da sala, e não sei porque, fico com a velha, e as mais estranhas associações vêm à minha mente, como se naquela lâmpada residisse alguma solução para o caso, como se ali...

Não levo meu raciocínio adiante. Sou interrompido pelos meus colegas. temos que sair.

As coisas se tornam um pouco confusas depois, e quando tomo consciência de novo, estou na casa de meu pai: uma monstruosamente luxuosa cobertura, que possui inclusive um pequeno oceano, com focas geneticamente criadas para viver ali. No jardim (um bosque em miniatura, onde eu caminho lentamente, lembrando de minha juventude) está havendo algum tipo de festa, e eu afasto-me dela, até que ouço o indistinguível grito de pavor de uma mulher. Corro para o local da festa, sacando minha arma. É um homem gordo, extremamente forte, vestido com um traje para invasão e boné, com densos óculos escuros.

Ele saca uma pistola com mira laser e luneta, mas eu consigo, de alguma forma, arrancá-la longe com um golpe. Lutamos, pois minha pistola está sem munição (esqueci de carregá-la depois do estranho evento no cemitério). Consigo quase sobrepujá-lo, mas ele acaba conseguindo escapar, saltando para uma corda pendendo da borda do jardim, caindo pelos quilômetros do prédio e prendendo a corda ao equipamento do seu traje, detendo a queda e nela desaparecendo.

Mais tarde, após a festa terminar, estamos apenas eu, meu pai, meus dois colegas e a ruiva na casa, bebendo e conversando. Eu tenho uma estranha sensação sobre os eventos de hoje. Meu pai não tem a menor idéia de quem seja o homem, mas sendo ele uma das pessoas mais ricas da cidade, ele crê que seja um ladrão. Não tenho a mesma opinião. Com o meu martini, perambulo pela casa, deixando todos conversando na varanda que dá para o pequeno oceano artificial da sacada, da borda da qual se vê toda a cidade.

Entro em uma das salas. Pequena e aconchegante, com poltronas, uma mesa de centro e um armário. Há uma lâmpada em uma das gavetas abertas. Algo está querendo me ser dito.

. . . . . . . . .

Não sei bem porque, mas estamos em Zurique, eu e minha mulher, juntamente com um grupo de amigos. Moramos em uma grande casa de três andares,em um bairro próximo do mar. O frio nos traz uma lembrança de algo que procuramos à noite.

Há um momento em que estou jogando, furioso, um livro aos pés de um amigo meu, gritando-lhe que tudo ali é verdade. Ele olha para baixo, a capa cobrindo seus sapatos, mostrando a foto de uma rosa sobre mármore negro-esverdeado. Em letras vermelhas, acima da rosa, a palavra VAMPIRE.

- É tudo verdade - digo eu, novamente, as minhas roupas encharcadas deixando escorrer poças sobre o carpete, umedecendo o chão com água salgada. Afasto uma mecha de cabelos molhados da minha cara e inacreditavelmente estremeço, não do banho recente a trinta graus negativos, não das roupas molhadas com água quase em ponto de congelamento, mas do motivo que me faz não sentir frio, que me faz sentir fome ao ver o sangue pulsando no interior das pessoas à minha volta, aspirar seu cheiro como o mais doce perfume, a mais rica e saborosa fragrância que jamais senti.

- É tudo verdade - repito.

E me deixo cair ao chão, tentando chorar.

Mas vampiros não choram.

Alguns dias depois...

Minha mulher continua desaparecida, e alguém está tentando atacar a casa onde estamos. Coloco todos na sala e estou lutando com um homem no terraço, mais forte e mais rápido que poderia supor algo vivo. Não que ele seja vivo. Mas também não sou. Lutamos, por algum tempo, até eu conseguir jogá-lo do telhado, através mais de sorte do que de habilidade. Ouço seu corpo atingindo o calçamento.

Mas quando olho, já não há mais corpo.

Uma semana depois.

Estou conversando com Mark Rein-Hagen. Ele é simpático, e me conta como ele e Anne Rice descobriram tudo, e como ele foi bem mais longe do que ela nas investigações. Um avião passa por sobre nós, distante, e sei que está levando meus amigos de volta ao Brasil. Alguém se aproxima de nós, bem vestido e agasalhado. Não estou surpreso de encontrá-lo novamente, embora o tivesse jogado de uma altura superior a nove metros de altura quando o vi da última vez.

Ele ri, e diz que traz algo pra aliviar minha tensão. Me entrega uma rosa de pétalas secas, quase murchas, dizendo que ela já estava morta há várias horas, antes mesmo que eu deixasse de ser humano. Diz também que não foi culpa dele. Não sei de mais nada, não percebo mais nada, enquanto seguro com cuidado a rosa na mão enluvada. Quando ele termina de falar e sai, eu corro em direção ao cais. Não lhe darei o gosto de me ver sofrer.

Mark vem atrás de mim, nós dois apenas borrões de movimento nas calçadas do crepúsculo de Zurique, indo em direção ao mar, com a última luz do sol ainda queimando minha pele e a dor - oh, a dor - e enquanto gritamos eu posso sentir a terrível agonia do fogo que o resto de sol, apenas uma sombra de seu sabre escarlate na borda do mar, mas ainda assim, é como um espinheiro de chamas nos nossos corpos. Grito a Mark para que volte. Não que ele me obedeça.

Chego à borda de uma rocha, mais de quarenta metros sobre as ondas furiosas e geladas, subindo com um grito e uma lágrima enrodilhados no pulmão vazio de ar.

Paro. Há um navio cruzando a borda do horizonte, manchado de rubro. A rosa em minha mão faz um ruído como o de papel alumínio sendo amassado. Giro o braço num arco longo e rápido. Uma nuvem de pétalas se espalha no ar, cobrindo o oceano de saudades mortas. Um começo de noite vai trocando a luz causticante por uma bem-vinda escuridão que me liberta da dor mas não da saudade. As pétalas da última rosa que dei a ela.

Oh, sim.

Até vampiros podem chorar.

E esta noite eu choro. Esta noite eu choro para sempre.

. . . . . . . . .

Estamos embrulhados em unidades de infantaria robotizada, a cavalaria tecnológica dos tempos futuros, avançando em passos de quatro metros, com os supressores de vibração e os cones de sombra, que nos tornam invisíveis a olhos e sensores, zumbindo nas costas, esperando impacientemente pela confrontação, o ardor do combate monstruoso, de máquinas-monstro, e sim - de homens-monstro, também: nós.

Enxergando em faixas ruidosas de infravermelho, ultravioleta, rádio e distúrbios gravitacionais, vemos a holografia dos marcadores de iminência de combate transitando perigosamente entre vermelho e púrpura nas calculadoras da matemática de guerra fractal.

O chão estremece com um espasmo seis na escala Ritcher. "Isso é guerra ou o quê?", ouço alguém gritar pelo meu receptor. Confiro o check-up visual da minha Cuspideira: a metralhadora de assalto superpesado de 37mm, munição perfurante explosiva, três mil tiros por minuto.

Explosão!

Um clarão de infravermelho absurdo nos sensores, passando rapidamente da saturação térmica para uma bola de fogo branco e alaranjado, cem metros à minha direita.

Posso ver o que restou de cinco componentes da minha tropa logo abaixo dela. O zoom me dá a horrível proximidade com a ruína carbonizada de um braço fugindo de ferragens retorcidas, semifundidas. Deixo os sensores varrerem o céu e o artilheiro automático dispara dois mísseis.

Luz.

Percebemos agora que estamos cercados, com monstruosos (e o que não o é, por aqui?) tanques abrindo impiedoso e invisível fogo de radiação sobre nós, atravessando plástico, vidro e metal para cozinhar-nos dentro dos trajes. Nenhuma evasão pode ser feita. Só nos resta destruir quantos deles for possível, antes que passem da nossa barreira e alcancem o silo três, onde a máquina de ruptura de fase cria um portal pelos abismos de espaço e tempo, que irá levar os civis para (muito, muito) longe daqui.

Não há qualquer possibilidade, chance, sequer esperança de vitória. Nós só existimos para lhes dar tempo o bastante.

Empunho meu projetor laser como uma lança, uma longa e infinita lâmina de luz cortando para sempre a realidade, para longe e sempre daqui, atravessando tanques e veículos aéreos com chuvas e cascatas de faíscas. Chamas desabrocham da carcaça de um maquinismo inimigo, faiscando holocausto na blindagem de cerâmica refletora, retalhando camadas e camadas de proteção com um ressonar barulhento de explosão. Um samurai como nunca se viu. Outros dois colossos artificiais rosnam sobre a colina mais próxima, e o braço vibra, os ossos chacoalham nas juntas quando abro fogo com a Cuspideira, espalhando inúmeras gotas de caos pelo campo, enquanto o computador mostra um gráfico fractal de combate como uma enorme onda matemática, de geométrica e simplificada beleza engolfando alguns poucos pontos difusos em uma grade escura, com pinceladas de azul e amarelo.

Alguém espalha um halo de entropia pelo campo, detonando minas de fusão e abrindo crateras vitrificadas de negro. E ainda dizem que não conhecemos o medo. Um tilintar nos sensores me atenua o desespero: Falcões atrás de nós, esguias formas aladas de homens e mulheres escorregando pela noite com um soluço abafado de antigravidade a conter seus corpos seminus, cobertos apenas com resina reflexiva de laser e antenas de sombra. O pulsar comprido, prazeiroso de suas pistolas pesadas de plasma, um retinir e ricochete finalizado com mais explosões no lado inimigo. Alguns deles pousam, apoiando o resto dos companheiros, correndo pelo campo com velocidade suficiente para incendiar seus corpos com o mais puro stress - inchando os corações em uma bomba de catarse alimentada com adrenalina sintética, estocada ao longo de minúsculas cavidades nas válvulas arteriais.

Vejo o chamejar púrpura de seus corpos quando morrem no ar, caindo com os hologramas de suas asas enlouquecidos, cadentes, em etéreas e deléveis cores de borboleta com frios tons de fogo transparente. Insetos que ousam voar perto demais das chamas.

A bateria da lança laser me dá mais dez segundos, o gume avermelhado embebido em raios-x falhando e desaparecendo no escuro. Sou atingido por uma granada, perto, perto demais. Os giroscópios me colocam novamente em pé e o computador me pergunta se eu ainda quero ficar assim. Desligo o sistema de som e penso na minha mulher, em milhões de mulheres e homens, sendo esmagados, respirando fogo grego em longa e lenta agonia se cairmos aqui, e decido que a pergunta do computador não é apenas inconveniente, é blasfêmia.

Quantos somos?

"Não mais que quinze", responde no monitor um computador apressado em cálculos de anti-balística e vetores de fogo. Giro mais uma vez a Cuspideira em arrastados semicírculos de cinquenta e três graus no céu à minha frente e espero por uma explosão que não acontece. A munição cai para dez tiros. Menos de um milionésimo de segundo de disparos me separa da morte. Tento recuar, mas as turbinas da bota não obedecem, murmurando um ruído seco e inútil. Talvez tenham sido as granadas. Não importa.

Já me sinto morto, ou meio morto, como o gato de Schrödinger. Terão que descobrir minha armadura, e eu dentro dela para que finalmente deixe de sofrer?

Espero que não.

O mundo treme com um trovão metálico, e algo quente, quase oleoso, me escorre do abdômen. O scan médico mostra um estilhaço. Uma farpa de metal radioativo de trinta centímetros, atravessada ao longo do fígado, varando uma costela e um rim. Com mais clemência que meu corpo talvez precise, ele recobre-se de um suor frio e cai rumo a uma silenciosa escuridão.

Logo após, luz.

Acordo.

. . . . . . . . .

É terrivelmente frio aqui, e minhas mãos desenluvadas não conseguem manter-se mais que dois três ou cinco segundos na água, agulhadas pela terrível frente de inverno da costa de Vladvostok... Não importa muito. Rapidamente, monto o sistema de rastreamento do torpedo ao meu lado, e deixo os técnicos fecharem-no, recolocando a cabeça da ogiva em seu lugar, cuidadosamente. Sou levado de volta ao submarino que descansa na baía, de onde posso ver o torpedo ao longe, pronto para ser testado, descansando sobre seus suportes hidráulicos, como um obsceno pênis de algum terrível deus bélico do mar, um misto talvez de Ares, Netuno e Von Braun.

Protegido na vela do submarino, relanceio com o binóculo pela praia, apinhada de veículos de esteira e hovercrafts. Um marinheiro sobe a escotilha, me avisando que o teste começará dentro de uma hora. Eu aceno com a cabeça para ele, distante. Ele me pergunta se estou bem, e respondo, distraidamente em inglês, que sim; depois corrijo em russo. Sim, estou bem, respondo apenas para o mar, em cujas profundezas dorme meu filho mais velho, na cabine de comando de uma corveta anti-submarino. Já fazem dois anos. Estará ele envolvido por anêmonas e corais? Terá seu esqueleto descarnado sido coberto pelas algas do pacífico profundo? Mas não adianta velar. Não posso saber nem sequer a posição secreta de onde seu navio experimental foi afundado por uma flotilha de submarinos invisíveis (também experimentais) da coalizão Sino-Eurasiana.

Mas estarei fugindo daqui à noite, após este teste. Quando todos estiverem comemorando meus sistemas sensores revolucionários, minhas ogivas mortais de fusão quântica, quando toda a base tiver a certeza da vitória. Haverá uma festa no balneário, com prostitutas pagas pelo Pacto de Varsóvia preparadas para me tirar dali, e me levar em um submarino escondido a cem quilômetros acima da costa. De lá, subiremos pela escuridão da madrugada de Bering, até o Alasca e daí voando para a segurança de Cuba, onde o resto da minha família me espera. Ela e longos interrogatórios por noites cujo fim não consigo imaginar.

Só o que sei é que não quero estar aqui quando tentarem me procurar, quando acionarem a busca com todos os dispositivos mortais que desenvolvi, e descobrirem que passei as últimas semanas introduzindo falhas ocultas dentro do labirinto de segredos que são seus projetos, conhecidos apenas por mim e alguns poucos técnicos leais.

Sinto apenas por não estar presente para ver o sol que beijará o mar quando os motores magnéticos dos submarinos fecharem-se sobre si mesmos, pressionando o espaço e tempo em suas gaiolas de Faraday, esmagando pequenos buracos negros sobre fótons de antimatéria, trazendo um fogo que empalidecerá a luz do dia em seus casulos limitados de destruição.

Sinto muito por ter trazido tanta morte. Mas já perdi uma esposa e um filho para esta guerra e para este mar. Sinto por ter que trazer alguns órfãos para chamar este ato de um capítulo final.

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