O texto abaixo é um clássico das minhas leituras sobre o Natal, e deriva do hábito de um tio-avô torto de fazer um exclusivo poema para a época natalina. Eu dei uma rápida limpeza no texto, já lubrificado por três garrafas (duas de um excelente Marcus James piagentino e uma de um riesling passável, quase de mesa) de vinho. Enfim: aqui vai meu texto-padrão de Natal. Prometo coisa melhor para o próximo. já que este é o primeiro Natal deste Blog.
NATALÍCIO
"All you need is love"
John Lennon e Paul McCartneyNoite de Natal.
Festa, brindes, abraços — e ele num bar qualquer. Sozinho, claro: a trabalho em uma cidade estranha, longe da família, longe dos amigos. Longe de qualquer um que ele quisesse estar perto. Sentou-se na mesa do canto e ficou observando o bar encher-se de seus clientes habituais e das caras novas que faziam uma rápida pousada em suas peregrinações de álcool e trilhas de nicotina, taxiando brevemente no balcão para rápido reabastecimento e então seguir viagem.
O de sempre. Pessoas sozinhas, casais, turmas e barulhentas turbas de pessoas procurando felicidade fácil e rápida.
Já quase meia-noite e nenhuma mesa vazia.
Pediu mais uma garrafa de vinho, mudou os aperitivos de lugar no prato com a mão já hábil no palito de dente, a cabeça pesando sobre a mão. Outro natal sozinho, outro dia sozinho. Nenhuma novidade. Foi quando levantou os olhos para a porta do bar — e o viu, subitamente, com uma clareza que culpou, em parte, ao excesso de álcool.
Devia estar ali há algum tempo, encostado junto ao umbral, mas sem impedir a passagem, logo ao lado de uma mesa cheia. O que impressionava era a beleza terrivelmente certa. O rosto sem um único ângulo que não fosse perfeito, sob a pele de um bronzeado marfim. Cobria-se de fulgor branco, imaculado, como se a roupa de linho puro o fizesse mais real que as outras pessoas.
Ele destacava-se nitidamente — como lhe pareceu naquele instante — contra o pano de fundo da própria realidade.
A brisa súbita, serpenteando entre os guardanapos e toalhas de mesa, fez seus cabelos moverem-se com suavidade — cachos curtos que quase alcançavam os ombros, cascateando tons de ouro velho quando voltou seu rosto para vê-lo. Traços de suave indolência, assexuados, andróginos, o olhar bonito (ou estranho, não sabia de homem ou mulher) o fitava desconfortavelmente.
Olhou para um lado, para o outro, e depois para ele, como se procurando certeza. Dirigiu-se até sua mesa.
— Posso sentar? — pergunta com uma voz que cairia melhor em bem-pagos tenores de Milão ou Madri.
“Essa não”, pensou. “Algum travesti maluco quer sentar na mesa”. Mas fazer o quê? O cara provavelmente iria dar um escândalo se ele não aceitasse. E, afinal de contas, era Natal.
Dane-se.
— Claro, sente — respondeu, indicando uma cadeira.
— Obrigado. Estava começando a ficar frio lá fora. Não que eu me importe, sabe, mas as pessoas iam começar a achar meio estranho, eu ali parado na porta, sozinho, o frio, uma noite de Natal. — fez uma breve pausa, com aqueles olhos perturbadores — Entende? — A voz tinha uma suave potência que lembrava o diálogo de um sonho. Ele pensou, por um instante, se não estava sonhando. Esfregou os olhos e relaxou.
— Bem... hmmm... Nada, nada. Qual é o seu nome?
— Shamael.
— Ah... Mas é um nome bíblico, não é? — O outro deu um sorriso estranho quando ele falou.
— Com certeza. — e sorriu mais — Afinal, eu estava lá.
"Um maluco", pensou, tentando não parecer assustado, brincando nervoso com o copo, pensando se o garçom estaria percebendo.
— Não, um maluco não — retrucou o outro.
Engoliu em seco. A visão girou loucamente em seu eixo, o foco turvando enquanto pensava se ia desmaiar ou não. Colocou a mão sobre a borda da mesa, tentando recuperar algum contato com o mundo real, concreto, ao que estava costumado. Respirou fundo. Mas o outro apenas sorriu e disse:
— Tudo bem, eu provo — olhou para o copo — O que é que você está tomando? Vinho, certo? Beba.
Pegou o copo com receio, como se contivesse veneno, e tomou, cuidadosamente, um pequeno gole (as coisas às que estava acostumado já não eram mais as mesmas. Tinham o ritmo de um sonho). Depois, com estupefação, outro. Mais um terceiro, cheio de surpresa.
— ÁGUA! — quase gritou — Este copo está cheio de água.
— A garrafa também — completou, balançando a cabeça — Mas eu pago outra — levantou a mão — Garçom!
Duas garrafas depois, ele acreditava, mas não entendia.
— Mas o que é que você veio fazer aqui, exatamente hoje? Veio tocar a trombeta do juízo final, trazer a destruição para a raça humana inteira, ou... — a voz trôpega embaraçava-se no que a mente visava aos atropelos.
— Não, não, calma aí. Nada disso. — e, antecipando certos pensamentos, acrescentou — E nem vim por você. Fique calmo. O Apocalipse não chegou ainda. E nem vai. Quer dizer, não depende de mim. E nem Dele. Quando é problema de vocês. Aliás, para falar a verdade, Ele nunca pensou em Apocalipse nenhum. Isso é conversa fiada. Ou você acha que alguém que constrói isso tudo ia colocar data marcada para pôr fim? Claro que não!
— Então por que...
Mas o outro parecia se exaltar. Não o ouvia.
— Você acha que alguém que construiu os mundos à mão, e as estrelas com seu sopro, dando forma a todas as criaturas vivas do cosmo à sua imagem e perfeição espiritual — não sua carne, sua forma, que ele não possui, mas à forma do seu espírito — iria fazê-lo? Ninguém tem vontade de destruir sua obra. Ninguém tem vontade de matar seu próprio filho, mesmo que ele seja, por vezes, mesquinho e vil. Não importa. À sua maneira, ele os ama a todos. E ama tanto que os deixou livres para seguir ou não suas palavras, não condenando pessoalmente ninguém por causa disso.
— Mas e as crianças que sofrem de fome, de maus tratos, os doentes, os oprimidos, todos esses...
— Sim. Bem. Isso não é com ele. Ele lhes deu vida, um mundo para viver, comida para caçar, cultivar e coletar, e inteligência para aprender a fazer tudo isso cada vez melhor. O resto é com vocês. Mais ainda: quando foi tempo, ele mandou seu próprio filho, em muitas formas possíveis, para que vocês soubessem como viver bem, segundo suas próprias culturas: Jesus, Sidarta, Arcanjos Mensageiros, Profetas... todos eles — fez uma pausa, como se refletisse, e acrescentou — É difícil a vida de um messias. Não os invejo, mesmo se pudesse sentir tal coisa.
— Você quer dizer... Não é Ele que faz tudo acontecer?
— Na verdade, não. Ele apenas construiu tudo, e pôs para funcionar, colocou leis, regras e liberou algumas energias por aí. As coisas funcionam sozinhas. Só de vez em quando é que ele intercede, e algo inusitado acontece, transgride-se alguma lei física aqui, há uma ressurreição acolá... O que vocês chamam de milagres.
— Eu... — a boca fervilhava de perguntas, mas qual a mais importante, meu Deus, qual delas? Fez a primeira que lhe veio — O que é que diabos você está fazendo aqui?
— Não blasfeme.
— Oh, eu... — engasgou com súbito pânico — Desculpe.
— Ah, tudo bem. Não é pecado. Desculpe, é um hábito antigo. Quer dizer, você não vai ser condenado por isso. Não depende dele, entende? Mas é que dói nos ouvidos, esse tipo de coisa. Eu provavelmente enlouqueceria se fosse a um show de Heavy Metal. Mas o que é que você havia perguntado mesmo?
— O que é que você...
— Ah. Lembrei. Bem, eu sou o... guarda-costas... do Filho, sabe?
— Você quer dizer... — ele quase não ousava falar — Cristo?
— Bem ali, naquela mesa — ele voltou-se e viu um jovem alto, bonito, com longos cabelos encaracolados e uma barba curta, bem vestido — embora com simplicidade — e rodeado de pessoas, bebendo e rindo. Era a própria alegria.
— Você quer dizer... Ele é...
— O próprio. Ele quis comemorar o aniversário na terra, e como o Pai nunca lhe recusa nada... Aqui estamos.
— E você é o guarda-costas dele.
— Pois é. Não é algo muito trabalhoso, sabe? Quero dizer... Tem os assaltantes, assassinos, psicopatas, cultistas... gente ruim em geral. Eles não nascem assim, as coisas não são bem.. Enfim. Basta que eles o olhem, que encarem aqueles olhos... e saem transfigurados. Viram assistentes sociais, floristas e professores, ou suicidam-se. Ademais, há acidentes, mas os caminhos do mundo voltam-se para ele. Balas perdidas não o encontram, carros desgovernados desviam para outro lugar, venenos transubstanciam-se ao tocar seus lábios e vasos pesados ficam firmes em seus parapeitos. Na verdade, eu só tenho mesmo que protegê-lo de forças superiores. Ou inferiores, se você pensar de uma certa forma. Coisas que estão além do alcance imediato Dele.
— Você quer dizer Dem... — interrompeu-se — Oh, Deus, desculpe.
— Não, tudo bem. É isso aí. Eles existem, sabe. Existem mesmo. — suspirou. — E pensar que o maior deles costumava ser um de nós.
— Lúcifer?
— Estrela da Manhã. O mais belo e poderoso de todos nós. Muito bondoso, magnânimo e tudo o mais. Mas aí começou a pensar que era O Próprio.
— Pecado do orgulho?
— Olha, pra falar a verdade, não era não. Ele era Deus, de uma certa forma. Tinha poder o bastante para isso. Só que não tinha sido ele que havia criado o céu, as estrelas e tudo mais, entende? Pois é. Aí veio a guerra — e eles caíram. As asas de Lúcifer queimaram e seu pé foi torcido na queda. Mas continua sendo um cara legal, se é que você me entende. Não é mais um anjo. Mais pra um de vocês. Humano. Mas tem o poder de um anjo. — balançou a cabeça, suspirando — Não é fácil, pra ele. Basta desejar e acontece. Algo ruim de se ter quando sua alma não é como um dos lírios dos campos. Ele tem mais poder na unha do dedo mindinho do que eu tenho no corpo todo, incluindo as asas, mas eu não o invejo. Bem, primeiro porque sou um anjo. E depois, porque não é o tipo de coisa agradável de se ter. Poder além de qualquer controle ou limite. Realmente...
— Existe um... inferno?
— É claro que sim!
— E onde fica?
— Você está nele. Ei, ei, é brincadeira. Piada de querubim. Mas há um inferno, sim. E é você mesmo que escolhe se vai pra lá, e quanto vai sofrer, por quanto tempo e como. Não há juiz pior do que você mesmo. Nenhum é mais severo. Não é Deus que o condena aquele lugar. Ele não poderia fazer isso, simplesmente não poderia. Assim, é escolha sua. Aliás, sempre foi escolha sua, desde que nasceu. Olha, para falar a verdade, foram vocês mesmos que pediram por um inferno. Ah, faz tempo, foi... olha, é complicado... Vamos dizer que não haviam céus ou estrelas, e o espírito de Deus pairava sobre a superfície das águas.
O homem fez uma pausa, pensou um pouco e olhou para a mesa onde Ele estava. Uma mulher morena, de exótica e absoluta beleza, estava sentada junto a ele, abraçando-o
— Aquela ali é...
— Magdalena. Bonita, não? E uma ótima pessoa, você nem imagina o que falavam dela, nos tempos de Jerusalém. A Bíblia não conta metade do que aconteceu. Ela está sempre ao lado dele. Os outros são velhos amigos e... Olhe só quem chegou! Em cima da hora, como sempre...
Os três homens entraram um a um, numa educada e informal fila. O europeu enorme, com uma abundante barba loura escondendo o nó da gravata; um negro de feições gentis e o corpo de um gladiador sob a camisa de malha; e o oriental, de pele e roupas finas muito claras, um sorriso perpetuamente singelo nos lábios. Traziam presentes cuidadosamente embrulhados. A chegada deles na mesa parecia uma festa.
— E é uma festa. Deus, é o aniversário de...
— Exatamente — disse o anjo.
— Eles não são aqueles que...
— Pois é. Lembro do trabalho que tivemos para que aquela estrela mostrasse a direção certa. Não foi fácil, acredite. Mudar uma estrela de lugar, ajustar o azimute, albedo, limpar a visibilidade celeste...
Estava literalmente... O quê? Não havia palavra grande o bastante. Suas mãos tremiam, o queixo pendia, estupefato. O anjo pediu mais uma garrafa.
— Sabe, estes anos de hoje em diante são especiais. Tudo pode acontecer. Tudo.
— Como assim? — tomou mais um gole.
— Hoje fazem dois mil anos. Na verdade um pouco mais, mas o que importa é a tradição. Pra mim, parece que foi ontem que eu o via brincando nas ruas de Belém. Era uma criança boa, acredite. Um pouco complicada, mas boa. E não era para menos: Nem oito anos e ele já dialogava com os sábios do templo. Senhor, como era engraçado!
— Mas o que é que isso tem a ver...
— Olhe. Eu não posso falar muito (você não iria entender muito, de qualquer maneira). Mas digo isso: torne esse lugar algo melhor pra você e os outros. Isso faz toda a diferença É, eu sei, parece babaquice, mas é a parte importante. Lembra? “Amem uns aos outros como eu vos amei?” Pois é. Essa é a única lei, por assim dizer. Não apenas amem Deus, o próximo ou você mesmo sobre todas as coisas. Amem. Apenas isso. Amem. Não precisa de muita coisa. O resto é fácil.
Ele pensou sobre aquilo tudo. Não era fácil entender. Aceitar, sim, mas... Mas o quê?
— Dúvidas são uma coisa boa. Fazem a gente refletir e pensar. Mas às vezes, não é momento para se pensar. É momento para se sentir. Sinta.
Quando se deu conta, o anjo estava olhando para ele.
— Mas amar quanto? O quanto era, ou será necessário?
— Não há quantidade. Apenas ame.
Ele pensou. Por um longo tempo, ao que parece, pois quando se deu conta, o bar já estava quase vazio. O anjo estava no fim do grupo de pessoas que saiam daquela mesa. Ia fazer menção de se levantar, mas o anjo tocou no ombro do homem abraçado a uma bela mulher de pele morena. Ele voltou-se, os reflexos de suave dourado na barba parecendo reluzir sob a iluminação do bar, o viu sentado e sorriu.
Foi o suficiente.
Seu sorriso englobava tudo: céu e estrelas, vida, morte e o que havia antes e depois. Guerras, sofrimento, dor, fome e risos, prazeres e as pequenas vitórias e derrotas que pontuavam o cotidiano de cada um. Os dentes brilhavam com os milagres da infância, os dourados anos da juventude quando tudo é intenso e bom, quando tudo tinha esperança, contrastando com os agudos meio-tons da velhice, repleta de experiência e lembranças que jamais seriam perdidas, jamais seriam substituídas.
Não era um sorriso. Era tudo. A história da criação traçada nas curvas e rugas dos cantos da boca, traçando o rumo de grandes sóis e mundos no vazio, nutrindo vida onde não deveria haver nenhuma. Era o caminho da água contando estórias escondidas da criação na sua transparência vital, unindo plantas, animais e a própria carne da terra em um único sangue. Era tudo
E tudo, dizia o sorriso, era bom.
Quando se deu conta do que havia visto, o garçom chamava seu nome: era hora do bar fechar. Saiu às ruas, não mais sozinho, não mais triste, não mais perdido.
Porque mesmo que o mundo contivesse dor, mesmo que houvesse a morte, mesmo que a perda e a agonia fossem tudo em uma vida...
Por trás de tudo isso havia o sorriso.
E ele era tudo.
Saiu assobiando na noite escura, não mais temendo o terror que voava ao meio-dia ou o terror que rastejava à meia-noite, pois havia conversado com um anjo e bebido à sua mesa e o Senhor, ou Seu Filho, havia lhe sorrido.
E lhe havia dito que tudo era amor.
Espero que a estória acima tenha sido de seu agrado. Se assim o foi, concedo que divulguem o endereço deste blog a seus amigos; se não, espero que tenham um devastador câncer de garganta e morram sem dar uma palavra ou tocar em uma tecla.
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