Há poucas coisas entre o céu e a terra que me fazem parar. Uma delas foi vê-la atravessando a rua com seu vestido de malha florida, o toque suave da seda deslizando imune contra a pele, que eu acreditava destruidora de lares e corações – o que seria a bomba atômica perto dela? Eu não tinha sequer nove anos, o corpo ainda recendendo a leite e chocolate, mas já tinha o coração voltado para um alvo inalcançável.
Paixão pela professora, pela colega do lado, pela vizinha sardenta – tudo ignorado, tolices menores, meras guloseimas diante da sobremesa suíça de três andares que morava na casa em frente, com longos cabelos lisos — que eu poderia jurar, eram iguais aos de Cleópatra, Helena, Afrodite, de antigas deusas, totens e avatares indígenas em sua mais pura beleza imortal, o melhor que o jardim selvagem da criação tinha a oferecer. Havia uma canção em algum lugar para aqueles seios, uma ode para as coxas, uma ária inteira para o colo, as dobras delicadas da barriga e do quadril — mas talvez nem uma série épica em quarenta tomos fosse o bastante para descrever o que se escondia entre as coxas, o secreto refúgio daquilo que meus olhos não viam nem esqueciam...
Nove anos e toda uma mitologia de pele branca tomando forma dentro de mim, por noites insones regadas a calor, a escuridão morna de floresta, de dias antigos onde o sangue corria mais espesso, mais selvagem, e não havia um só homem sobre a terra que não fosse eu, e ela a definitiva Eva, correndo para sempre nas florestas, as grandes matas e bosques que eram o teto do mundo sob o grande azul de mistério, coberto pelo manto de estrelas à noite — e o meu desejo continuava...
— Não há nada que me satisfaça neste mundo — ela me disse, quando estendi-lhe o ramalhete de lírios pálidos, que inconscientemente escolhi com a mesada da semana, no florista do bairro ao lado — não há nada — repetiu, e então sorriu, abaixando-se até a altura dos meus doze anos, e beijou-me no rosto, tirando lágrimas à fórceps, coisas escondidas há — quanto, meu Deus, quanto tempo — séculos sob a carapaça que eu agora vestia, sentindo-me frágil, desarmado: tão eu...
Pouco mais restou. Caminhadas noturnas com os poucos amigos, os primeiros cigarros, as ocasionais visitas às bebidas de casa, mal escondidas de meu olho atento, os pequenos esconderijos do dia-a-dia onde eu tentava me suprimir da religião que era ela... Santa atenta de olhares, de atenção perene, de intolerável onisciência.
Não foi senão aos quinze que desapareci da vida, dentro de sua casa — noites inteiras perdidas, molhadas no perfume de sua carne em movimento, da doce e terrível torção de músculos em eterno vigor. Minha breve juventude drenada, fogo de palha perto de sua fornalha de sonhos incansáveis... Que mais me restava?
Cinco anos ficamos dentro da casa e por cinco anos não soube luz do dia, respirando entre a seda fina dos lençóis e a penumbra do seu quarto... cinco anos de bendita exaustão onde, ao final, misteriosamente, me senti homem — e saí para o mundo, sem contudo, sair dela... Os dias caíam um a um, e eu fazia a lida de um lento amadurecer, jamais me importando com o fato de meus cabelos encanecerem com as décadas que se vão, com as manchas que desbotam as mãos, com as pequenas dores de ossos e ligamentos — ela está sempre lá, e seu toque é todo o bálsamo que preciso.
São noventa anos agora, ao lado dela, com a paixão ainda brilhante no canto dos olhos, embora meu corpo já não conheça mais o caminho para seus portos secretos, para seus eternos momentos de ápice — mas ela me trata com todo o cuidado que somente séculos de hábito poderiam conhecer. Ainda tão adorável com a imóvel beleza que o tempo apenas retocava, distraidamente, uma ruga aqui, outra, talvez — quem sabe — quinhentos anos depois...
Talvez por um tempo maior do que eu me conhecia enquanto espécie, ela já estava lá, vida após vida, com a eterna paciência de me encontrar, para de novo entender o amor — da maneira que só os mortais são capazes, encontrando-me sempre pronto, sempre disposto, sempre tão tolamente apaixonado... Repetimos, uma vez mais, um ciclo maior que a história de todas as civilizações humanas, morrendo e voltando, com uma idéia fixa, uma promessa, um desejo.
Cumprindo o sacrifício que às vezes se faz por uma mulher, quando ela é a única no início dos tempos.
Quando é tudo que existe entre o céu e a terra.
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