13.3.04

Teoria e Prática dos Filmes de Ação

Escrito após uma madrugada insone de maratonas de Matrix, Kill Bill e aquele veado do kung fu - como é mesmo o nome dele? - ah, são tantos...

 

Há um conjunto de regras naturais, de leis físicas, que explicam tudo. Se você as estudar bastante — e eu quero dizer bastante —, o suficiente para fazer seus neurônios sangrarem, marcando-os com uma nova visão de mundo, uma nova liturgia da realidade na sua consciência, você entenderá porque elas não fazem nenhum sentido.

É como uma palavra: diga panela trezentas vezes e a própria idéia, o próprio conceito de panela deixa de fazer sentido. Não há mais uma ligação entre o objeto e sua representação fonética ou simbólica. O mesmo acontece com as leis do mundo.

Uma dessas leis fala sobre a trajetória que as balas de uma submetralhadora MAC-11 calibre quarenta fazem quando disparadas em modo automático de uma arma precisamente lubrificada, enquanto seu corpo gira cento e oitenta graus no ar, desviando-se de estilhaços de janelas presumidamente à prova de balas. Existem mesmo essas regras, Elas podem ser aprendidas e saturadas, resultando no seu total esquecimento.

Eu entendo que a realidade é como você quer que ela seja, e no meu caso, é um caótico e movimentado episódio de filme de ação, uma transposição cinematográfica multimilionária de uma história em quadrinhos sobre o que acontece quando a sua vida pula da janela do último andar.

Não literalmente.

Não há queda, ao início, apenas a noção de que o mundo é absurdamente maior, muito mais complexo e completo que você imagina, que há essa noção, essa — consciência — de completude sobre ele, que todas as coisas simples que você buscava em sua vida eram tão pequenas e mesquinhas, que não fazem mais o menor sentido, que são tão perfeitamente irrelevantes que você pode simplesmente jogá-las fora e esquecê-las completamente. Que seus ideais, credos, códigos e elementos de caráter eram tão bidimensionais quanto a personalidade de um coadjuvante de filme B.

O novo mundo aguarda por você.

E o velho mundo se torna seu inimigo mais mortal, como um supervilão de quadrinhos, jamais morrendo, sempre retornando pelo artifício do clone, da réplica andróide, da viagem no tempo, do sonho ultra-realista, da possessão psíquica — da mera lembrança de que ele um dia já existiu. O sonho do seu passado está sempre nos calcanhares: um dragão velho, rancoroso e com uma ânsia brutal de vingança. E você o enfrenta, trançado em conflito como se os deuses combatessem embriagados em brigas de bar, facas e punhos e cusparadas e chutes na virilha desprotegida.

Tudo isso e armas que jorram chumbo entre reflexos estroboscópicos de luz e artes marciais ocidentais: o Gun Fu, o golpe do Dedo da Morte sobre o Gatilho da Destruição Final. Todos os velhos monstros e demônios adormecidos no aço gelado e mortalmente invulnerável de seus corpos de formas tão anatomicamente perfeitas, mais complementares a mãos e dedos que uma espada ou faca. Ou mesmo uma evolução das mesmas — grandes armas de lâminas cegas, brutas, cujo comprimento alcança várias dezenas de metros — as grandes lanças com H&K, SigSauer e Colt gravadas em seus corpos de titânio, aço e polímeros sendo capazes de chegar às centenas de metros, aos mágicos milhares de metros, o inimigo caindo morto como se por vontade ou ira divina, seu coração, cérebro, espinha e intestinos dançando no ar em uma chuva de fragmentos pulverizados pelo poder de sua absurda precisão. Pelos passos da morte presos na dança de um tiro, uma morte.

E o velho dragão jamais vence. Pois você já o venceu antes, e tudo que ele pode fazer é persegui-lo. Cruzar oceanos e mares de caos, de gloriosa probabilidade em busca de sua carcaça liberta de suas garras de tédio, conformismo e coincidência. Você pode sentir seu cheiro à noite, pode ouvi-lo sussurrar ameaças na estática do telefone, procurando tentá-lo aos prazeres obscuros que permeiam o bom combate, como se seus desejos fossem uma realidade filha do dragão, como se não fossem parte de você, de seu íntimo mais pessoal — Alma, Mente e Zen.

Neste momento de ângulos perdidos, de paredes de concreto tilintando frágeis com os golpes que trocamos em nossas danças de destruição, balés complexos com megatons de incandescente fúria apertados firmes nas mãos, esperamos ansiosos pelos socos precisos, contra ossos e peles e órgãos e blindagens e couraças ditas invulneráveis, sentindo o regozijo tão deliciosamente sutil neste bailado marcial de saltos e rasteiras e pontapés. O combate brutal, feroz, metamorfoseado — destilado na sua mais perfeita forma de arte. Movimentos que se integram a todos os outros, onde até quedas e ferimentos são ensaiados, derrotas menores precisamente acumuladas no rumo à devastadora vitória final. Pode ouvir os quarteirões do mundo, as ancas centenárias do dragão gemendo com o esforço, enquanto combatemos seus capangas de pesadelo, correndo sobre as costas de arranha-céus, suas peles feitas de três centímetros de vidro anti-tempestade? Nossos passos suaves de trator deixando sulcos delicados nas coberturas reflexivas, o ímpeto de nossos momentos angulares, maiores que as leis da aerodinâmica, fazendo ruir os editais da gravidade, os protestos das leis de conservação de energia, de movimento e de anatomia (tudo isso há tanto tempo deixado para trás, há tanto tempo abandonado como um conjunto de regras que alguma criança achou por bem colocar em seus jogos de faz-de-conta e nunca pensou em mudar depois que cresceu. Bem, o faz-de-conta acabou).

A física deixa de ser o território de Newton, Einstein e Hawking, e passa a ser de Woo, Tarantino e Worchowski. O mundo torna-se o nosso playground.

Brincando de polícia e ladrão nos campos do Senhor.

Pense na fúria cegante destes encontros, dessa elétrica sexualidade de arcanjos guerreiros, de senhores da morte certa, de protetores da arma sagrada semi-automática de infinitos disparos, deitando miasmas de pólvora como o fog escarlate das praias da Normandia em um Dia D, o chão coberto de cápsulas acobreadas — o tapete vermelho de nossa cerimônia de morte.

Mas não há Morte. Nunca há morte. Ela que é nossa aliada, empregadora — o patrão para o qual fazemos entregas anônimas, não importa a hora, não importa o dia. A vitória absoluta de comissão.

E no final, no prólogo apocalíptico — talvez apócrifo, talvez definitivo — em encontros que a elegância pede não contar além de três, nós nos encontramos pela última e definitiva vez, para termos certeza, para soprar suas cinzas no coração de uma estrela, para enterrar sua cabeça no solo árido de um planeta esquecido e para guardar seu coração em um pote de reluzente salmoura, postado sobre a prateleira de troféus (mais um entre tantos outros).

E ele volta mais uma vez.

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