Já que um ou outro gato pingado se interessou, aqui vamos nós de novo. Esta é outra estória, não diretamente ligada (pelo menos não neste momento), e certamente, não em sequência, mas enfim, no mesmo "ambiente".
Limite da Visão
“Meus olhos doem.”
“Só um instante”, disse o médico, examinando as leituras do aparelho oftalmológico, um inseto em aço branco, plástico e mostradores de cristal líquido que brotava a partir do pedestal, ancorado ao chão acarpetado. Um conjunto de patas espalhava lentes, sondas, espelhos e luzes sobre os olhos do paciente recostado na cadeira. Ele teclou um comando, observou novamente as leituras e fez os membros da máquina afastarem-se da cadeira.
Seu paciente, um homem corpulento, mostrando mais que alguns sinais de excesso de peso, ergueu a cabeça, piscando, enquanto tateava pelos óculos no bolso do casaco. Levantando-se devagar, ele acompanhou o médico até sua mesa, onde uma receita era expelida pela impressora. Ele ouviu o mastigar metálico que secionou o papel, quando o médico puxou-o da fenda junto ao gabinete do computador.
“Use esse colírio”, disse ele, “e evite sair de casa durante o dia, até a ardência diminuir”.
“E seu eu precisar?”
“Precisar o quê?”, perguntou, sem levantar os olhos do teclado
“Sair.”
“Ora, pra quê?”
“Trabalhar, sei lá.”
O médico olhou-o com um sorriso malicioso: “e você trabalha fora de casa?”
“Não, mas... Bom, sei lá... Se precisar ir ao médico — como agora.”
“Use os óculos escuros.”
O homem assentiu, lembrando-se da dificuldade para chegar até ao consultório, mesmo com seus Ray-bans no máximo, o marcador de UV na borda da lente reclamando com um sinal de exclamação vermelho, irritado, sempre que ele tentava escurecê-los além do limite permitido por lei.
Apertou a mão do médico, despedindo-se, e tomou a saída da clínica, agradecido pelo sol já ter se posto. O carro sinalizou em reconhecimento, quando ele se aproximou, e abriu a porta ao toque da mão na maçaneta. Sentou-se, o cinto de segurança ajustando-se à sua volta, travando na posição com um pequeno choque metálico. O motor elétrico ronronou em resposta, acendendo os faróis e ele entrou no trânsito da avenida principal, perdido em pensamentos e temores de luz.
“Não medo do escuro”, pensou, “mas da luz”.
O carro perguntou se ele não queria ir pela rota mais comum, e ele ignorou o pedido de direção automática — não confiava muito na perícia do satélite de navegação local. Duas vezes este mês, o alarme do carro o assustou quando começou a receber os dados do satélite: vírus de navegação. Algum garoto esperto e sacana tinha entrado no satélite de trânsito pela rede, deixando uma trilha de sujeira digital. Desde então, não se arriscava, pelo menos até poder colocar um software de proteção melhor no carro. Um daquele anti-vírus da Volksoft deveria ser o bastante. Não eram conhecidos pela alta eficiência, mas pelo menos a atualização era de graça, e pegavam a maioria dos sacaninhas de computador. Os mais comuns.
Mas este mês não. Tinha que terminar o jardim, pagar as aulas de violino de Helena, e tinha também aquele filtro de ar pra sala... Não, definitivamente, este mês não.
Além disso, Carla queria um carro novo. Não que o dela estivesse velho, mas ela simplesmente não se dava bem com a interface dele. “Quem agüenta esses volks?”, ela dizia. Bem, ele não tinha problemas. Eram um pouco obtusos, claro, mas agradáveis. Não se metiam na sua vida, eram educados, não tentavam parecer humanos... Ele não gostava de máquinas excessivamente humanizadas, da idéia de eletrodomésticos tendo que parecer gente. Estações de trabalho, máquinas de atividade intelectual, isso ele podia entender. Mas carros? Elevadores? Geladeiras? Não, havia um limite para o que deveria ser tornado inteligente — ou pelo menos, com a aparência de inteligência.
A chuva começou subitamente: um aguaceiro violento, cegante, que o fez ligar o automático, deixando o carro manobrar a maior parte do tempo, as mãos no volante fazendo correções mínimas de curso, um conforto pessoal de que alguém estava no controle, não um computador infectado flutuando a alguns quilômetros acima, no céu índigo da baixa estratosfera.
Meia hora de tráfego pesado e a chuva cedeu por alguns minutos, limitando-se a uma garoa rápida, com chicotadas ocasionais de vento molhado. Ele gostava quando chovia, de certa forma. Limpava o ar, fazia o cinzento do céu um pouco mais claro. Dava até pra imaginar como ele era azul. Podia se lembrar ainda, com dez, quinze anos, andando por ali, sob o sol... fazia tempo demais. Virou uma esquina, o carro comunicando-se com o portão da garagem, abrindo a porta, fechando...
A chuva ficou do lado de fora. Apenas um tamborilar surdo no telhado de vitraplástico o acompanhou, deixando uma assinatura úmida, distinta, no ar, de ozônio, poeira e lixo.
“Antigamente,” pensou, com uma certa nostalgia, “cheiro de chuva lembrava terra molhada”.
Saiu da garagem, entrando na casa pelo pequeno corredor de concreto. Pendurou a capa ao lado de um par de galochas empoçando o chão com barro e lama de papel colorido.
“Hoje em dia é só lixo molhado”.
Mas sua esposa o recebeu com um sorriso, deixando o controle remoto de lado, e ele pensou que afinal, as coisas não estavam tão más assim.
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