Já há algum tempo eu venho trabalhando (e abandonando) a idéia de trabalhar em uma coletânea de contos e noveletas. Este que vocês lerão abaixo (se tiverem saco para tanto), faz parte de uma variação desta idéia: um conjunto de contos interligados, contando uma só estória, do ponto de vista de várias personagens diferentes. Comentários, please.
Gata de zinco no teto da noite quente
Enrodilhada na cadeira, Lana sentia-se vazia, aridamente seca, como se todo o vinho que já havia tomado pudesse desidratar. Como se ele fosse a verdadeira esponja, e não o seu fígado dolorido.
As garrafas espalhavam-se no chão sem nenhuma ordem aparente. Ergueu os pés descalços, sentindo o frio do chão nu, os mosaicos de cerâmica encaixados no quebra-cabeça intrincado e quase hipnótico — tedioso, até — dos tons de marrom veneziano e areia. O sistema de entretenimento doméstico junto da janela embalava tristeza estéreo no piano sintetizado, soando demasiadamente melancólico ao fundo da orquestra de cachoeiras, chuva e vento que a máquina se esforçava em fazer parecer natural, coreografada nas caixas sensurround —resultado da economia de quatro meses de salário — espalhadas estrategicamente pela sala escura.
Apatia. O tamborilar da chuva lhe deixava com um gosto de tédio, um metálico amargo na boca, no mesmo lugar onde ele a beijara pela última vez. Coçou a pele nua da barriga, desceu um pé para brincar com uma garrafa e o vitraplástico esverdeado imitando cristal fez um ruído desagradável pela textura enganosa do piso.
Rilhou os dentes, lembrando de que ele detestava o som e levantou-se; sentindo o equilíbrio falhar. Ele riria, se a visse assim. “isso é algo que jamais aconteceria comigo”, diria. Mas ele não estava aqui. Estava na rua — ou já instalado em algum outro lugar? Não. Seu impermeável cinza-azulado — com a grife se destacando em um sutil holograma de néon — estaria agora deixando a chuva respingar à volta, mantendo os cabelos negros apenas úmidos, os olhos como faróis de jade.
Ah, que bobagem, conjurar estas imagens dele. Não era com poesia fácil que ele iria voltar. Algo o faria voltar? Ela procurou pelos cigarros, em algum lugar na penumbra da sala, e quando sua mão tocou o plástico do isqueiro, ela já tinha uma resposta formada.
Não.
Ele não era de voltar. Suas roupas já não estavam aqui; não que tivesse muitas. Apenas o bastante para que coubessem em duas malas, nada de peso excessivo. Um homem prático.
E, como todos os homens práticos, insensível — pelo menos no final.
Luz. A grade de prata-tungstênio na ponta do isqueiro, engravidando um ovo de plasma incandescente, flutuando como um pequeno milagre acima da ponta do tubo roliço, menor que o seu polegar. “Tudo isso para acender um cigarro”, murmura. O maço de Java Supremes estava ao lado do isqueiro, pequenos cilindros enrolados à mão, com folhas de fumo cubano e turco. Caros, mas ela podia se dar a esse luxo, pelo menos, de vez em quando.
Ah, merda, estava na fossa. Haveria luxo maior que esse?
Tropeçando, foi à geladeira descobrir se ainda havia outra garrafa de vinho. Não que a garrafa fosse de vidro, ou que seu conteúdo viesse de uvas, mas o que era verdadeiro hoje em dia? A maior parte dos homens tinha plástico em pelo menos um quinto dos seus corpos esculpidos nas boutiques cirúrgicas do centro da cidade e dos shoppings da zona sul: sorrisos, olhos e pele. Toda uma geografia de músculos inflada e tornada rígida para atender aos apelos da moda. Íris reluzindo azuis, verdes, ocres, neon, de iridescente vermelho Ferrari ou com o padrão de estrelas em supernova que era a novidade da semana. Plástico, tudo plástico.
“Então, qual é a diferença”, pensou, talvez em voz alta, “se os corações são de pedra ou plástico?” Suas mãos encontraram a maçaneta da geladeira, na altura da coxa, e ela abriu a porta, deixando a luz baça revelar feições agudas, o nariz arrebitado e esguio, abaixo da pequena catarata de fios negros misturados com louros, cuidadosamente espalhados pela franja. Os olhos castanhos, agora melancólicos, encontraram uma garrafa de vodka pela metade.
Fechou a geladeira, destampando a garrafa e tomando um gole direto do gargalo. A bebida desceu com um leve acento de cevada no final e ao invés de calor, um calafrio percorreu o rosto, indo depositar-se no peito.
“Ambos não quebram, no final”, concluiu para si mesma.
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